“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

NO LEBLON

Favela sandálias obscenos acordados
No Leblon
De pé na praia sentados abacaxi
No Leblon
Garota satélite gerúndio abismados
No Leblon
No Leblon

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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sábado, 26 de dezembro de 2009

2 litros e mmm

Vou assobiar dentro desta
garrafa de água
mandar aspirina
adentro 2 litros e meio e
mmm ser feliz
como em my favorite things
nem que me seja
demais pra cabeça.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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de Ofício- VII

I-

Repara/ o gato olha sem fundo/se reparar o gato/ a cabeça nas palmas/ roça também pelas quinas de mesas/ um bicho quente fazendo-se acarinhar/pelo frio das coisas é isso indistinto/repara escrever/ escrever é juntar pelo corpo um colar de carinho das/coisas sem vida.

II-
Escrever pra formar o outro

dizer a cabeça do outro formado

Quando deitar a cabeça

ser irmão



por visitar

-o pai deixou descobrir o mundo.


III-
poesia

alça do furacão princípio acontecendo contínuo girando o olho-originando origirando o cimo dos genuínos gerúndios do estado da terra em ciranda-o indo, indo afundando a mentira-feijão entrando a terra

a terra, Antonio?

Deus quem mentiu comigo


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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

POEMA SECO PARA O DIA DE NATAL

ao camarada marighella, em  memória, e também ao frei betto


no dia 4 de novembro de 1969
em são paulo
na alameda casa branca
o poeta
político e guerrilheiro
carlos marighella foi assassinado
numa tocaia armada
pelo delegado sérgio paranhos fleury e seus comparsas
entre outros vícios
inclusive o da cocaína
fleury tinha fascínio em assassinar pessoas
no dia 4 de novembro de 1969
- dia consagrado a são carlos borromeu -
assassinaram carlos marighella
encheram marighella de tiros
antes torturaram dois frades dominicanos
com quem marighella mantinha contato
eu tinha só treze anos mas sabia quem era carlos marighella
pela boca do meu pai
o delegado fleury frequentava a igreja do sagrado coração
no bairro do bom retiro
onde minha avó me levava
o delegado fleury comungava todos os domingos ao lado da mulher
a amante ficava pra mais tarde
não sei por que estou escrevendo isto hoje
é natal
acho que eu devia escrever coisas mais bonitas
mas devo ter bebido demais
no dia 4 de novembro de 1969
a polícia política brasileira
assassinou carlos marighella
que só queria um brasil melhor
no dia 4 de novembro de 1969
o corínthians de rivelino
jogava no pacaembu
contra o santos de pelé
o serviço de alto-falantes do estádio
anunciou a morte de marighella
como se isto fosse uma glória

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júlio saraiva,
são paulo, brasil, madrugada
de 25-12-09,
lendo o livro Batismo de Sangue,
do frade dominicano e escritor
Frei Betto, onde o episódio
é narrado
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

POEMA DE NATAL ACHADO NO FUNDO DA GAVETA

fico pensando que devo dizer a mim mesmo meias verdades

mas eu não sei o que não são meias verdades

se cantam uma cantiga de natal lá fora

ponho-me triste

- meu irmão quisera eu saber 

por que não não cantas um samba de breque

um fado

um baião

um rock

um frevo (como o dos carnavais do recife)

uma marcha-rancho

ou qualquer outra merda

que hoje me faça dormir em paz

sem que me venha à cabeça esta data?

esta data?!

mas meu deus que data?!

tenho alguma conta a pagar amanhã?!

devo no mercado?!

algum encontro marcado comigo?!

ora se não tenho nada disso foda-se

quero a liberdade do meu nariz

andando a pé pelas ruas

sem remorso

de ignorar a terrível Noite Feliz

(há canções que são de inteiro mau gosto)

por que esta noite há de ser feliz?

saio pelo bairro onde moro

as luzes das casas estão todas acesas

porque por obrigação quase litúrgica

esta noite exige que todos sejam felizes

: queria só um maço de cigarros

um gole de uísque

quem sabe eu escreva uma prece

(quem sabe? - não garanto e nem estou obrigado)

àquele que nasceu pobre

miserável

numa estrebaria

em belém que não conheço

e por certo nunca vou conhecer

que não deixe que  façam uma noite de mentira

de árvores e lâmpadas falsas

mas que ponha na consciência dos homens

um pouco de boa vontade

e faça o mundo feliz

(merda!)

noite feliz uma ova!


(manhê essa farofa me deu azia)
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júlio, 1976, publicado no Jornal Iniciativa Privada, do movimento Poesia Marginal, postado como o movimento exigia, nos banheiros públicos de são paulo, iniciativa do poeta aristides klafe.


'Pra não dizer que eu não falei de flores' - Geraldo Vandré
http://www.youtube.com/watch?v=g8v5twPc-io

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

2 PEQUENOS POEMAS

ISCA

o peixe morre pelos olhos

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TATUAGEM

o menino
imprimia peixes
na pele verde
das águas
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 20 de dezembro de 2009

pertences

tenho uma ferida

dentro da barriga



é literal

e dói

no natal



tenho também

um vazio

no peito



levo-o comigo

sempre que me deito



tenho uma dor

a lembrar-me da vida



que interessa,amor?

se é dor antiga...



sei navegar

em águas profundas



mas não é meu o mar

nem o barco que afundas
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alexandra cruz mendes,
guimarães, portugal
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ELIS

"Faço parte de uma geração que vinha do sol e, de repente, viu a luz se apagar."
- Elis, numa entrevista -


diante da gravidade
foi preciso que mudasses
em vísceras tantas vezes
o timbre da tua voz
diante da impunidade
que é bicho de muitas faces
foi preciso que alterasses
o calmo correr dos rios
em correnteza veloz
diante da atrocidade
foi preciso que acordasses
com o teu desabafo feroz
um país adormecido
em posição de sentido
sob os olhos frios do algoz
diante da insanidade
de um sol dividido em classes
foi preciso que cantasses
fazendo das garras unhas
para desatar tantos nós
que perdesses o juízo
elis também foi preciso
e assim teu canto preciso
fez-se o canto de todos nós

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júlio saraiva,
são paulo, brasil
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ASSIM É ELIS


um pouco de elis

elis regina carvalho costa, ou só elis, era malcriada ao extremo. não tinha papas na língua e só cantava o que gostava. mas também sabia ser dócil, quase uma criança. pouco mais de um metro e meio de altura, soube erguer sua voz forte contra a ditadura militar implantada no brasil. sua risada, só quem ouviu e viu pode dizer, era gostosa e boa de se ouvir e ver. ria com a alma. mas que não a tirassem do sério. virava onça, apesar do pouco tamanho que tinha, não levava desaforo pra casa. foi a maior intérprete da música popular brasileira. e ao cantar Pra Dizer Adeus, com o arranjo magistral do maestro júlio medaglia, que junta o popular e o erudito numa coisa só, neste espaço postado, pelo poeta carioca José Silveira, mais do que amigo, irmão, porque me socorre também nestas horas difíceis, uma vez sou péssimo em computador, foi a única, com sua interpretação,que dispensa comentários - já haviam gravado esta canção antes -  a perceber que torquato neto estava anunciando o seu suicídio. o  que aconteceria um dia depois de completar 28 anos. com gás de cozinha. elis entendeu, com a inteligência e sensibilidade que tinha, que ali se escrevia a crônica de uma morte literalmente anunciada. que garcia márquez aqui me perdoe. não perderia o título. um beijo, elis.um beijo, torquato. carinho edu.


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j.s.
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são paulo, brasil

sábado, 19 de dezembro de 2009

UMA CERTA ELIS. SÓ CANTOU, NUNCA DISSE ADEUS

http://www.youtube.com/watch?v=9qL9_Z9luUc

ADONIRAN, SE O SENHOR NÃO TÁ ALEMBRADO...

Quero, de coração, agradecer ao meu irmão José Silveira,  o Zé Brasileiro, como eu o chamo, pela homenagem feita ao poeta Adoniran Barbosa,  cujo nome de fato era João Rubinato. Pedreiro, pintor de paredes e ator - e talvez o maior compositor de música popular de São Paulo. Criou uma linguagem própria, coisa que ele não fazia - o escrever errado. Rubinato, como eu o chamava, falava muito bem. Só não comprava cigarros, embora fumasse muito. A beleza que José Silveira, o poeta José Silveira, oferece-nos neste espaço é um encontro memorável dele, Adoniran, com a maior cantora do meu país - ou do mundo-, da qual fui vizinho um tempo, Elis Regina. Rubinato, que nasce por trágica coincidência, no mesmo dia que eu, 6 de agosto, já estava debilitado, pelo excesso do álcool e do cigarro. Morreria logo depois deste vídeo memorável. Mostrou à minha querida Elis, ou a Pimentinha como era chamada, pelo seu temperamento explosivo, o bairro do Bixiga, onde moro hoje. E ela, olhando os prédios que tomaram conta da avenida Paulista, agora o maior centro financeiro de São Paulo, cantou o samba Saudosa Maloca. O resto eles falam. Silveira já colocou com mestria Elis e Adoniran. Não digo mais nada. Ela canta, ele fala.

J.S.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

SONETO DE ADRIANE

vinho nunca foi veneno adriane
veneno tem a luz deste teu olhar
a cegar o meu para que eu me engane
e me torne engano bom de se enganar

vinho sempre foi milagre adriane
mesmo que não seja vinho de altar
teu beijo-vinho faz com que eu profane
meu ser em pecado só de profanar

veneno é tentação que teu corpo tem
mistério gozozo que em mim habita
e me leva longe muito mais que além

veneno sagrado veneno do bem
a matar de vez minh'alma aflita
todas as aflições que do mundo vêm

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Júlio Saraiva,

São Paulo, Brasil
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sábado, 12 de dezembro de 2009

PAULO VANZOLINI, UM HOMEM DE MORAL


Pelo menos uma das frases de seus muitos sambas virou locução popular: "dar a volta por cima." Está incorporada no dicionário do Aurélio. Paulo Emílio Vanzolini, o doutor Paulo ou o Paulinho, como se fez conhecido nas rodas boêmias de São Paulo, além do grande compositor que é, fez-se mundialmente conhecido como cientista - é um dos maiores especialistas em anfíbios e répteis. Sem conhecer uma nota de música, compôs Ronda ("De noite, eu rondo a cidade a te procurar...") - talvez a canção mais cantada na noite paulistana. Boêmio inveterado, é uma das figuras, ao lado de Adoniran Barbosa (pseudônimo de João Rubinato) mais queridas de São Paulo. Além de Ronda, escreveu Volta por Cima, Na Boca da Noite (em parceria com Toquinho), Mente (com melodia de Eduardo Gudin) e Capoeira do Arnaldo, com ele mesmo, além de outras tantas.

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J.S.,
São Paulo, Brasil
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NA BOCA DA NOITE

Cheguei na boca da noite
parti de madrugada
eu não disse que ficava
nem você perguntou nada
na hora que eu indo
dormia tão descansada
respiração tão macia
morena nem parecia
que a fronha estava molhada
vi um rosto na janela
parei na beira da estrada
cheguei na boca da noite
parti de madrugada
gente da nossa estampa
não pede jura nem faz
ama e parte não revela
sua guerra sua paz
quando o galo me chamou
parti sem olhar pra trás
porque morena eu sabia
se olhasse não conseguia
sair dali nunca mais
vi um rosto na janela
parei na beira da estrada
cheguei na boca da noite
parti de madrugada
o vento vai pra onde quer
a água corre pro mar
nuvem alta em mão de vento
é o jeito da água voltar
morena se acaso um dia
tempestade te apanhar
não foge da ventania
da chuva que rodopia
sou eu mesmo a te abraçar
vi um rosto na  janela
parei na beira da estrada
cheguei na boca da noite
saí de  madrugada

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VOLTA POR CIMA

Chorei
não procurei esconder
todos viram
fingiram
pena de mim não precisava
ali onde eu chorei
qualquer um chorava
dar a volta por cima que eu dei
quero ver quem dava
um homem de moral
não fica no chão
nem quer que mulher
lhe venha dar a mão
reconhece a queda
e não desanima
levanta sacode a poeira e dá a volta por cima
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CHORAVA NO MEIO DA RUA

Você diz que eu choro escondido
meu Deus do céu que ingenuidade a sua
se eu tivesse que chorar
chorava no meio da rua

Diga que ainda lhe quero
é verdade
Diga que ainda lhe amo
é também

Mas chorar nem sozinho
e nem na frente de ninguém
Diga que chorei
ninguém vai crer
Todos sabem que eu sou duro
de roer

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Paulo Vanzolini,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

UMA CANÇÃO, NÃO A MESMA ROSA AMARELA, PARA O POETA CARLOS PENA FILHO

eis a rosamarelazul
mui bêbada e caliente
a bordar novos luares
sobre a palavrausente

estranha melancolia
é esta que nos convida
aos mais estranhos festins
pelos "savoys" (*) da vida

colombinas de marfim
doidivanas a galope
lavam as nossas cabeças
com trinta copos de chope

e trinta copos já foram
mais outros trinta virão
a ruminar as memórias
do velho boi serapião(**)

rubra preguiça e domingos
cheirando a missa e coreto
repousam vertiginosos
no colo azul do seoneto

recife - a musa - desperta
e nua entrega-se a um mar
de cores como só carlos
pena filho soube pintar

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(*) alusão feita a um famoso bar
do  Recife, Pernambuco, onde o
poeta frequentava.

(**) Boi Serapião, Memórias do. Famoso poema épico de
Carlos Pena Filho, no qual o boi é o narrador.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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PARA CARLOS PENA FILHO


Carlos Pena Filho (1929-1960). Este foi gênio. Deu cores ao soneto - pintava com palavras. Poeta, advogado e jornalista. Só não teve tempo de ser o maior poeta brasileiro. Um estúpido - como são estúpidos todos os acidentes - acidente de automóvel o matou.

FLAUTISTA


Só fui ser poeta aos 60 anos
quando todos os poemas
já estavam escritos
e poesia não havia mais.

Tocador de flauta
sopro árias inúteis
dos que não sabem tocar.

Toco também sinos nas igrejas
mas só em dias póstumos
ou em casamentos desfeitos.

Aos 60 anos as imagens são outras
e também desnecessárias
como a flauta
como a música.

Só fui ser poeta aos 60 anos
quando eu já não sabia viver
como se fosse preciso viver
para ser poeta.

Então descobri o mar
mas era tarde

Sempre me disseram
que poesia é sacerdócio
por isso andei sempre
com uma extrema-unção no bolso.

Só fui ser poeta
quando não tinha mais tempo
e me faltava o ar
quando
todos meus barcos de papel
já tinham afundado.

Só fui ser poeta
quando todas as rimas
rimaram palavras e poemas
mulheres e plantas
aves e ausências.

Antes eu somente
andava perdido
entre poemas e lugares
preces e acenos.

Antes não existiam os sons
que agora ouço
entre o esquecimento
e o que nunca foi.

No entanto toco minha flauta
para preencher as tardes
e trazer as aves
para mais perto de mim.

Descubro agora que os oceanos
são claros como as manhãs
e só agora compreendo
a cor do Outono.

Antes eu não me tinha
como me tenho agora
a bater à porta de uma casa
de janelas azuis.

Não sei se terei tempo
de tecer ainda os mesmos
poemas já escritos
de procurar a mesma poesia
que se perdeu nos chapéus
reminiscentes das pessoas.

Sou agora uma pessoa antiga
talvez tenha os olhos de meu pai
aqueles que se fecharam
na brancura das paredes.

Agora tenho comigo uma bolsa
de pequenas pedras
e  algumas chuvas do final das tardes.

Os animais me seguem nesta planíce
como se eu fosse um pastor sem volta
a percorrer montanhas nas fotografias.

É possível ver melhor agora
o fim das coisas
que também antes terminavam
mas eu não via.

Há um  navio na minha porta
oceano que se abre ao mundo
numa viagem em torno de mim.

Só fui ser poeta aos 60 anos.

Sei agora o que significa a poesia
por isso tenho no rosto o espanto
e na boca
as palavras que não sei dizer.
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Álvaro Alves de Faria,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ORAÇÃO, ao circo

aquela tristeza única
como a lona
encardida dos circos
de antigamente

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Julio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

miragem do rosto ou três chances de eco

entrei e me viram
como soubessem algum segredo
sobre o amor da família um cochicho
e aquela

II
aquela mulher
aquela mulher tem meu rosto (e três chances aqui)
tem minha boca o meu chapéu
é alguém com meu sangue guardado no feltro
minhas pequenas distâncias entre vogais
como ser Eu em ão
como ser Eu na seguinte sentença
as coisas da nossa casa
morrem já pelas sementes
o seu sentido é romã
e quem se arvora no nome envelhece com ele
primeiro

III
das pernas partimos
de onde partimos, vaqueiro?
eu quero ser sua amiga como uma fratura
antes os ossos em linha
estalam sem sobressaltos até
aos confins de anfíbios
flutuam e oscilam nem
podem prender-se à verdade costela da frase
: perdemos o temporão, Marta
(marta me abraça, se agita)
dirijo-me à Marta que haja em Maria, que tenha perdido
diria que sinto se fosse Antonia
se fosse minha a rua e ladrilhos a veritas-mágoa
será para ali logo sinto que abraço
(garçom, mais três chances na mesa em latim e fechamos)
que sei eu agora? esse invento
nada
que sei eu ainda? não tudo, belezas do ouvido jovem
florete de água afastando o ar das jangadas
o inseto turquesa pousado no cílio

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

CONSERTAR A TERRA

Dizia-me o  meu avô:

- O assobio do amolador chama a chuva.

A profissão do amolador caiu de velha no desuso da
modernidade,
O meu avô caiu no desuso da terra.

Que assobio chamará o meu avô?

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Bruno Sousa Villar,
Portugal
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Adornos

Rezo nas noites:
-minha tristeza
– que é franciscana - fazei-me um cético

Mas(sss)
vem a manhã
que é mulher e instrumento de coxas
Tantos adornos na paz.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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Queimadura

A mão mergulhada no copo aquece
a água de queimaduras. A mão se cozinha de fora para den(...)

Você não me odeia
Eu não te amo
Tenho meus trinta e poucos
(mais dois e são quase quarenta)
fico mais um acidente doméstico
e vamos
tratar dos extremos

Há coisas que posso dizer dançando.

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Adriane B.
São Paulo, Brasil
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A PENÚLTIMA CEIA

esta pálida luz do teu silêncio
habita os corredores da memória
vai cortando o tempo ao meio e vence o
velho era-uma-vez de toda história

e tudo o que já fomos agora dói
feridas que não cicatrizam nunca
a maldição a caminhar adunca
esta traça que aos bocados nos corrói

e assim nos morrem todos os assuntos
tal como nós também morremos juntos
a ambição do nada é o que nos resta

nada nada nada mil vezes nada
provamos as sobras do que foi festa
até que cesse enfim a caminhada

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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CANÇÃO (Eu conheci uma mulher)

eu conheci uma mulher, ela trabalhava de noite até tarde
tudo estava bem
tudo tão perfeito
eu conheci uma mulher, ela trabalhava de noite até tarde

eu conheci uma mulher, ela nunca olhava atrás
tudo estava bem
tudo tão perfeito
eu conheci uma mulher, ela trabalhava de noite até tarde

um dia ela partiu, foi-se com o destino
tudo ficou bem
tudo tão perfeito
eu conheci uma mulher, eu conheci uma mulher

ela trabalhava de noite até tarde.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ANA CRISTINA CESAR, ENTRE A TERNURA E O DESESPERO



"O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi - ela fica - como uma fera."
               - Armando Freitas Filho -



Ela era linda, culta, de inteligência fora do comum. Ana Cristina Cesar ou Ana C foi uma das vozes mais significativas do que se chamou Poesia Marginal dos Anos 70. Às vezes frágil como uma porcelana, às vezes parecia feita de ferro. Sabia ser terna e também irônica, conforme seus escritos revelam. Nasceu no Rio de Janeiro, a 2 de junho de 1952, numa família de classe média. Aos 4 anos já ditava poemas para a mãe. Precoce, aos 7 começou a ter seus primeiros poemas publicados, no Suplemento Literário do jornal Tribuna da Imprensa. Cursou a faculdade de Letras, lecionou inglês e português, viajou várias vezes para o exterior. Traduziu Katherine Mansfield, Emily Dickinson e Sylvia Plath. Também exerceu o jornalismo, colaborando principalmente em veículos da chamada imprensa alternativa da época. Participou da antologia 26 Poetas Hoje (1976), organizada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda, ao lado de poetas como Cacaso, Capinan, Torquato Neto e Isabel Câmara. Ousada, sua poesia, sem linguagem rebuscada, porém de extrema elegância, percorreu os caminhos do lirismo, da sensualidade e da irreverência, mas sempre com luz própria. Ana C está, sem dúvida, entre os dez mais importantes poetas brasileiros contemporâneos. No entanto, no dia 29 de outubro de 1983, ela se cansou. Tinha só 31 anos, mas se cansou. Antes, falou ao telefone com seu amigo e confidente, o também poeta Armando Freitas Filho. Disse que estava bem, parecia feliz. Pouco depois, dirigiu-se à janela do apartamento de seus pais, no 7º andar de um prédio, no Rio de Janeiro, e resolveu voar. E voou, para não voltar nunca mais.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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RÁPIDA ANTOLOGIA DE ANA C


QUANDO CHEGAR

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso

julho 67
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CIÚMES

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.

abril 68

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A CARTILHA DA CURA

As mulheres e as crianças são as primeiras que
                             desistem de afundar navios.

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SAMBA-CANÇÃO

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi de graça,
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia fera,
risinho modernista
arranhando na garganta
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

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PROTUBERÂNCIA

Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
embora o mundo me condene
Devo falar em nariz  (as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me empresta seu peito na madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou,
                      armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que
se fecham sobre si mesmas
No ano do 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
                          rainha de quem, quê, não importa
                          E se eu morrer antes disso
                          Não verei a lua mais de perto
                          Talvez me irrite pisar no impisável
                          e a morte deve ser muito mais gostosa
recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Uma palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.

setembro 68

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Os poemas de Ana Cristina Cesar  foram tirados dos livros A teus pés, Brasiliense, São Paulo, 2ª  edição, 1983 e Inéditos e Dispersos poesia/prosa, (obra póstuma), organizada por Armando Freitas Filho, Brasiliense, São Paulo, 1985                                      

para Ana Cristina Cesar

lima de ferro no gosto/ o sentido daquilo aproxima/ visto na luva a forma chamada mão/ me toco a decência antes/ sugo da pia a má continência de mar/ o mar o cano distinto vênus/ pereço os sentidos que dei comigo/ as pontas extremas da pedra fria carregam um equilíbrio de estrela que as une/ que as força viga/ agora me lembro a forma de pedra/ dobro o voo daquilo que a terra rejeita/ pêndulo
agora                              
inspiro.
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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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PARA NÃO ESQUECER ANA CRISTINA

"e na deck-chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade de um sorriso"
- Ana Cristina Cesar -

não consigo deixar
de afundar navios
e alugar cômodos
em casas mal-assombradas

espero pelo último round
vejo tuas fotos no livro
redescubro a hora no velho cuco
que deixou de funcionar quando eu era menino

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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A CASA DA MENINA SENHORA

A casa está lá, como eu imaginei tantas vezes depois de passar os olhos em alguns cartões postais: caiada, branca, muitas janelas, um porão escavado, vários cômodos, um pomar, uma porta de entrada, outras de saída. Ao lado, tranquilamente corre o Rio Vermelho. Um casarão velho? Sim, mais parecido com uma nau adormecida no colo das águas. E a moradora? Partiu há algum tempo, no dia 10 de abril de 1985. Sua presença, entretanto, ainda permanece nos objetos espalhados nos vários cantos.
Falo da poeta Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas e de sua casa velha da Ponte, no cerrado goiano. Nesta mesma casa fiquei sabendo, conversando com alguns moradores, que a poeta recebeu o nome de Ana em homenagem à santa padroeira da cidade. O ano era 1889. O Brasil? Um país em travessia: a mão-de-obra escrava negra era substituída pelo trabalho livre e a Monarquia dava lugar à República.
Mesmo com as mudanças da época às mulheres restava, quase sempre, aceitar o destino traçado pela família e mais tarde pelo futuro marido, normalmente escolhido pelo pai da moça. Mas Ana queria mais. Personalidade inquieta, apresentou os primeiros sinais de rebeldia aos 15 anos quando decidiu, para preservar seus escritos da censura familiar, adotar o pseudônimo de Cora. Um segundo momento marcante de rebeldia aconteceu aos 20 anos, quando movida pela paixão e o desejo de liberdade, fugiu com Cantídio, homem 22 anos mais velho, separado e com filhos. Daí para frente  não parou mais: alistou-se como enfermeira na Revolução de 32, escreveu um manifesto para a formação de um partido feminino e aos 70 anos, com o aval de Carlos Drummond de Andrade, publicou seu primeiro livro de poemas.
Se a casa velha da Ponte, apesar da beleza arquitetônica, não despertou em mim grandes surpresas, porque pouca diferença tinha daquela imagem que eu trazia dos postais, a história de Cora Coralina, narrada pelos seus conterrâneos, me surpreendeu bastante e acordou em mim fortes lembranças de meus antepassados.
Durante a minha infância ouvi muitas vezes minha tia Teresinha, por quem eu tenho um grande afeto,  contar nos finais das tardes, entre um gole de café e um pedaço de bolo de cenoura coberto com chocolate, a história de Maria do Carmo, irmã caçula da minha avó Aurora, de rosto quase idêntico ao da poeta de "Estórias da Casa Velha da Ponte", que em meados do século passado, também como Cora Coralina, no auge dos seus 20 anos, não temeu quebrar as amarras e escolher o próprio destino.
Contou-me tia Teresinha - que afirma que apesar dos cinco anos de idade recorda-se de todos os detalhes daquele dia  - que Maria do Carmo a levou, como fazia religiosamente, para tomar sol e brincar com outras crianças na praça da cidade. Maria do Carmo tinha um grande carinho pela sobrinha, afinal a menina era a única criança da casa, com todos os mimos merecidos.
Naquela manhã, como de costume, a menina Teresinha soltou-se rapidamente da mão da tia e correu ao encontro das crianças que brincavam na praça. Nada parecia ter o poder de romper com aquela rotina de infinitas brincadeiras ao sol. Mas de repente o barulho do motor de um carro - coisa rara naqueles tempos - abafou a algazarra infantil e modificou aquela manhã ensolarada. Como na imagem congelada de um filme parece que todos os personagens perderam o movimento na cena, exceto Maria do Carmo que rapidamente correu em direção ao jeep e desapareceu. Sentada e aos berros no meio da praça, Teresinha denunciava a fuga e minutos depois a vizinhança da pequena cidade comentava a ousadia da jovem Maria do Carmo, moça inteligente, prendada, de boa família, que por conta de uma paixão clandestina havia contrariado as ordens familiares.
O tio de Maria do Carmo, homem conceituado na cidade, logo sugeriu denunciar o rapto ao delegado de polícia, mas foi aconselhado a abandonar a ideia para evitar um escândalo maior. Nessas situações, diziam os conselheiros de plantão, era melhor ceder ao capricho da paixão dos jovens e rapidamente providenciar o casório.
Nascida em uma família católica tradicional, Maria do Carmo, alguns meses depois do casamento, engravidou. Desta primeira gravidez nasceu Vitória Amélia. Em seguida, uma nova gravidez e mais uma menina com o nome de Carmem Célia. Em um periodo curto, uma terceira gravidez. E aí um menino: Celso.
Maria do Carmo contrariou com afinco às ordens familiares e casou-se com o homem que amava, mas seu corpo não resistiu à imposição machista que condenava as mulheres a gerar um filho após outro. E digna de uma personagem de folhetim na quarta gravidez sua história chega ao fim.
Não conheci Cora Coralina nem Maria do Carmo - elas também não se conheceram. Mas a semelhança de alguns fatos vivenciados por essas duas mulheres colocam imensas asas em mim e num voo transgressor procuro encontrar o sentido da minha própria história.

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Rosangela F.C. Borges,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

EU TIVE UM NOME UMA VEZ

Tiveste um nome uma vez
tiveste um nome
com ramos ferozes na entrada
O campo cedeu sob o peito inchado
do céu no seu meio
Gorda a feira do céu expondo
metais sobre a terra pontas de
antenas bicos calando a prata
Lá trabalhei
tive um nome em batalha
Manteve
De açúcares-pardo seu cheiro
velhos fechados nos móveis
hóstia doce trazida no bolso- a vigília
as patas da vaca pegada com deus
úmida ao atropelo da morte nos homens
De urina grávida: afeto de fora
feito nas traições estrangeiras
Narinas da rua onde a vila não mora
chamavas apenas parte
Tudo por água quintal acácia
por mim por mim

Eu tive um nome uma vez
arejado, quarando um país de mulher
na luz inteira da
boca aberta em cães de passagem.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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INSÓNIA

Vira a noite do avesso: a insónia
à desfilada cavalga
as sombras a pulsar perdidas

despenteia as estrelas desgrenha
desmesura o peso
e o pavor das horas desmedidas

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

TRECHO DO MEU DIÁRIO

não penses nunca bia que sou tudo isso
sou uma mulher comum cheia de fragilidades
mas não esperes que eu tire a máscara do meu rosto
assim como tiro a roupa
não gosto que me vejam chorando
deixa-me ser assim como sou
com as minhas fraquezas
não me cobres nada
nem me peças mais do que te posso dar
por mais que eu me fique a remoer
jamais vou cair a teus pés
que eu seja tua em nossos momentos
de resto sou do mundo
sou imunda
vagabunda
sou esterco e flor
não me peças bia que te ame
não me peças nada
se te chamo meu amor é mentira
não sou dona das minhas verdades
nem mesmo sei o que é a verdade
só sei das coisas que doem em mim
tua língua às vezes é uma faca afiada
a me cortar o ventre
mas mesmo assim eu gosto
talvez a dor me dê prazer
ofereço a mim mesma este desprezo
e morro mais a cada dia

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Annabárbara,
Rio de Janeiro, Brasil
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domingo, 29 de novembro de 2009

CANÇÃO EM SOL SUSTENIDO PARA O SEU ANIVERSÁRIO

para adriane


hoje prometo que vou deixar de ser velho
e vestir minha melhor roupa de menino e cantar uma cantiga de roda
no lugar do batido "Parabéns a Você"
e mesmo pela manhã
ainda que o dia acorde nublado e com chuva
haverá um sol que colhi para lhe dar como presente de aniversário

convocarei os primeiros galos da madrugada
para que despertem com seus cantos a estrela da manhã tão preguiçosa
ladrão que sou furtarei também
com a conivência de lorca três ou quatro dos seus melhores poemas
com as devidas desculpas ao poeta por não conseguir escrever
nenhum outro melhor
por absoluta falta de competência
(merecia eu a bala na nuca)

convidarei para a sua festa
sylvia plath ana cristina cesar hilda hilst e também clarice
pedirei a elas de joelhos que não morram nunca mais
trarei todas de volta à vida
como seu presente de aniversário
já que sou tão pobre e nenhum ouro lhe posso dar

tome esta canção desafinada
(perdão!) cantada pela minha voz tão rouca de tanto desatinos
pedirei ao mar que não tenha fúria
aos rios que venham calmos ao seu encontro
aos peixes que me tragam numa rede tecida
com os longos cabelos de iemanjá
o poema que pensei para você
pedirei aos homens que não falem mais em guerras
que não produzam as fomes
pequeno que sou mesmo assim pedirei
às mulheres que não abandonem seus filhos
pedirei (como seu presente de aniversário)
que o mundo possa respirar um pouco
ao menos hoje
respirar um pouco
porque sei que amanhã tudo volta ao normal

(30-11-2009)
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

DITIRAMBO

A bem-amada me aguarda
com paraísos nos lábios
e pássaros nos dedos.

Minha bem-amada
é feita de chuvas distraídas.
No seu colo as nuvens se encolhem
e brincam de ninar as crianças mortas.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

CANTIGA DO FUNDO DO POÇO





http://www.clesioboeira.com/meump3/julio.mp3


Procuro pela moeda
perdida no fundo do poço.
Não demora amanhece
e os desejos vão todos dormir exaustos.

Amigo, amiga:
- Procuro pela moeda,
mas vejo apenas meu rosto
no fundo do fundo do poço,
banhado de luas antigas,
vinte anos mais moço.

Procuro pela moeda,
Amigo, amiga...
E lá se vão vinte anos
no rastro de tantas mortes,
no fundo desta cantiga.

Procuro pela moeda
já gasta de tantos desejos:
vasculho pedra por pedra
e nem sinal da moeda
entre os escombros que vejo.

Amigo, amiga:
- Vinte anos mais moço
procuro pela moeda
no fundo desta cantiga
(cantiga dos afogados
que dormem no fundo do poço).


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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
declamado pelo poeta José Silveira,
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
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FADO PARA MARIO OSORIO, POETA, MEU AMIGO

tenho a quase louca impressão:
vi-te  a beber chá ou rum num qualquer café londrino
tinhas o cigarro ao canto da boca
e eu bebia e fumava também
 estávamos separados a poucos metros por uma mesa
e eu não tirava os olhos das pernas da garçonete com sotaque francês
corria o ano de 1956
ano em que por acaso nasci
lias alguns jornais no café
e reparei que a exemplo dos meus os teus olhos eram tristes
culpa talvez das notícias
depois bem depois soube que o amigo navegava
pelos mares de lisboa
amália ainda cantava
e podia se ouvir pelo rádio
mas sabes como é mario
quando a gente caça gilete para cortar os pulsos
procura sempre a veia mais azul
o sangue esguicha mais rápido
a hemorragia vem mais depressa
e a morte é um salto só
mas neste tempo eu ainda estava no ventre da mãe
não tinha ideias suicidas
e nem planejava escrever nenhum poema

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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LUZ PERPÉTUA

para Manuel Bandeira (do Brasil), como queria Drummond

"Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis."

(Manuel Bandeira, in A Cinza das Horas)

"Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" -"Não foi!"

(M.B., in Carnaval, poema declamado pelo poeta Ronald Carvalho,
durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo,
em fevereiro de 1922. Recebido sob vaias, por um plateia burguesa e moralista, fez valer a Manuel Bandeira
o epíteto de "O São João Batista do Modernismo".)


Por ocasião da Primavera,
o conselho supremo dos patos
do lago do Ibirapuera
pede um minuto de zoeira
em solene homenagem aos sapos
do poeta Manuel Bandeira.


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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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VERSOS DE FORA

coma-me,  possua-me,
esfrega na minha cara o que tens.
sou puta de rua mesmo.
me troca por mais outros dois.
me joga no lixo depois.
me faz gozar no teu corpo.
dorme depois feito um porco...
eu juro não te acordar

(mas não te esqueças  que fui tua mulher
um tempo, algumas horas talvez.)

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Annabárbara,
Rio de Janeiro, Brasil
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

VENTURA

Quem sabe meter pelo maço
no bolso uma
concha tentada
A nota com nota na quase
intenção de rasgar o desvelo
: “encontre-me aqui e suba depressa comigo”
Quem sabe na esquina
o olho -grau onde queima um carro
Primeira marcha: abrir uma praia em tear
Contrário, na quarta, romper a fechada
em tapete
Num vidro bonito que acima do ombro
quem sabe dormir sem querer
ouvir sem querer e disso querer migrar
Quem sabe morrer
sem deixar por acaso
Pautar desnecessária a voragem
Omitir-te assim tudo isso
A outro por nada entregar
Quem sabe dizer?

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

o->

A Grécia é o mar.
O mar é a minha calma.
A calma é o mar grego.

Eu estou calmo.

Eu sou a Grécia.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ANNA, ANTES DE O CHÃO

Rota na pele
Pisa que cheira a cascalho
do cais rumo à praça catorze
Olhos sem ranço de pena
Fruto de um podre que verga,
olha
Cheia,
ímã nas patas de mosca larva
Trai só de boca
com sangue
Ela a balada
irmã das sirenas:
choro de mãe triste puta, olha
Disse-lhe a meia lua uma foice:
- Não se demora com
os pés pelo porto

Não se demora, por isso, vai suja-amarela
Não sangra por isso, corre
mastiga com força o gosto da terra
Corre ao próximo homem,
anda
antes de o chão vir comer-te
porque precisa, Anna

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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CANTO A MIGUEL TORGA, O POETA DA LIBERDADE

"O universal é o local sem paredes."

- Miguel Torga -


um metro e setenta e sete
tinha o poeta de altura
o corpo todo magreza
no olhar tristeza tão dura
punha oculta a beleza
pouco exibia candura
era assim o doutor adolfo
irmão daqueles que desde cedo
desenhou-se a vida dura
pro mundo foi miguel torga
gênio da literatura

seus hábitos trasmontanos
ele trouxe para o brasil
onde viveu alguns anos
sob os cuidados de um tio
mas atendendo à saudade
doída da aldeia natal
tratou de juntar-se ao povo
sofrido do seu portugal
torga adotou por nome
que é planta do chão agreste
e com a voz inconteste
gritou alto contra a fome
gritou contra a força do mal
disse não à censura
abaixo à ditadura
desafiou o general

no entanto quem o bem canta
cedo perde a razão
o ditador se alevanta
e dá-lhe por prêmio a prisão
aljube tem por destino
e por alimento água e pão
então riu-se todo o burguês
engordou de satisfação
vendo que o camponês
ficou longe do seu irmão

mas posto em liberdade
mais forte o poeta voltou
cantando a sua verdade
cantando as águas do douro
cantando as mágoas do tejo
cantando o correr do mondego
seu canto jamais se calou
nem quando perdeu a guerra
pra morte em câmara lenta
passado já dos noventa
se a mão da inimiga apanhou
adolfo correia rocha
miguel torga continuou
seu canto em toda parte
na boca de alguma gente
nos sonhos que sempre sonhou
de um mundo assim sem paredes
livre das fomes das sedes
não preso só aos limites
do mapa do seu portugal
um mundo de uma só língua
todos num único barco
sem comandante na proa
quer no brasil quer em goa
o mesmo sol o mesmo sal
em angola em moçambique
em são tomé guiné-bissau
no timor em cabo verde
também nos confins de macau
quem sonha não vê distância
tira a capa da arrogância
sonha um sonho universal

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 17 de novembro de 2009

PÓRTICO

Uma nuvem virou panamá
na cabeça do ocaso.

Um colibri fechou os olhos
da folha morta.

Os cães vinham de longe,
atraídos pelo cheiro doce
das pedras no cio.

O arco-íris soprava
aos ouvidos das águas
frases arrancadas do Livro de Jó.

Tu colhias a rosa-dos-ventos
com mãos de saudade.

Depois, em passos de minério,
retornavas ao princípio das coisas.

-Todas as coisas

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Júlio Saraiva,

São Paulo, Brasil

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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

OUTRO INDIGENTE



http://www.clesioboeira.com/meump3/CDST-%20outro%20indigente.mp3

Murmúrios
da fome.

Palavras nulas.

Sem travessão,
sem interrogação,
sem exclamação,
vírgula...
Com ponto final.

Palavras
emudecidas.

Apenas
um olhar,
driblando-as.

a do Retirante
cambaleante.

Sem prumo,
sem rumo,

Arrastando,
o que lhe resta.

Na fresta da vida,
na sarjeta.

cai.

Sobre o ombro,
o peso do olhar,
extático.

Olhar refletido,
na vitrine
do bar,
no mar.

Por passantes;

é pisado,
cuspido,
humilhado.

um corpo;

alheio,
inerte,
caído.

Óbito refletido
na vitrine do bar,
refletindo...

um morto,

velado
pela brisa
do mar.


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José Silveira,
Niterói, Rio de Janeiro,
Brasil
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sábado, 14 de novembro de 2009

TRÍPTICO

O retrato de Edith Stein em hábito carmelita
e o de Santa Teresinha do Menino Jesus
aos oito anos, sete antes de se fechar no convento.

No meio deles, o teu
com o olhar dourado a indicar-me o portão de saída do paraíso.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

DEPOIS

O escuro pesando nas copas,
a bolsa de tinta membrana remando seu polvo, eras assim
perfeito eu perfeita contra o equilíbrio das folhas
antes do raio
Embora eu não saiba eras ainda
na testa incendiada de sombra
aquilo que apago molhando nas costas da mão
Costas ao lado
cúmplice farta e farto sem rosto
eras, como quem larga da faca o visgo dum crime
: a luta anônima
Como quem pisa descalço no pátio
do sono
lavado por arrebentar uma fábula
Reajo à dormência do pó
à prata reajo a soma dos planos
Embora eu não saiba o escuro pesado
sussurras em mim
a espécie de fato que somos
"Somos um fato"
repito como quem fala
pesado no sonho: fui tudo e tudo e tudo
e perco o sonho
Depois
perderia o raio

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

SONETO

Às vezes sou louça fina,
às vezes barro grosseiro.
Às vezes deito menina
e choro no travesseiro.

Às vezes me acho na esquina
à caça de aventureiro
e digo que a minha sina
é dar por qualquer dinheiro.

Às vezes sou Colombina,
cheirada de cocaína
no fogo de fevereiro.

Às vezes sou peregrina,
tão frágil, tão pequenina
rezando p'lo mundo inteiro.

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Annabárbara Lins,
Rio de Janeiro, Brasil
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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ALEXANDRE (O GRANDE) O'NEILL

Por Mario Osorio,
Lisboa, Portugal


Alexandre O'Neill (Lisboa 19 de Dezembro de 1924 - 21 de Agosto de 1986). Fundou, em 1948, com Mário Cesariny, José Augusto França e outros, o chamado "Grupo Surrealista de Lisboa". O grupo distinguiu-se pelo seu posicionamento abertamente contra o neorealismo e o regime, tendo retirado nesse ano a colaboração com a III Exposição Geral de Artes Plásticas, por recusar a censura prévia. O reconhecimento da sua poesia veio apenas dez anos depois, com a publicação do livro "No Reino da Dinamarca" (1958). A sua obra, além de poesia, contempla ainda traduções e antologias. Contudo, foi na publicidade que O'Neill trabalhou a partir da década de sessenta. São ainda hoje conhecidos os seus slogans "Há mar e mar, há ir e voltar" (do qual se lamentou por não o ter resgistado), "Ele não merece, mas volta no PS" ou "Bosch é bom". Preso pela P.I.D.E. ( a polícia política portuguesa da época da ditadura) por diversas vezes, foi ao longo do tempo desviando-se dos círculos e tertúlias, não se filiando em qualquer actividade partidária. Morou no bairro do Príncipe Real, em Lisboa, num velho prédio da Escola Politécnica, onde encontrou Pamela Ineichen, com quem manteve uma relação amorosa na década de 60. Quiseram dar-le uma medalha, a Ordem de Santiago e Espada. Respondeu, por escrito, que não aceitava porque era ele quem estava em dívida para com o país -"Sou contra, era a forma mais simpática de dizer não." Em Abril de 1986 sofreu um acidente vascular cerebral, fruto de uma vida desregrada, que o levaria a internamento prolongado no hospital, acabando por morrer em Agosto desse ano. A sua literatura combina com elementos de vanguarda artística, do quotidiano e da sátira, com neologismos, humor e absurdo.

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M.O.

Lisboa, Portugal
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AUTO-RETRATO (Um poema de Alexandre O'Neill)

O'Neill (Alexandre), moreno português
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

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Alexandre O'Neill
Portugal
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SE O ALEXANDRE O'NEILL APARECER

Se o Alexandre O'Neill aparecer
De luto, e mão erguida
Contra a poesia que escreveu
Em vida
E esquecida, depois morreu,
Façam o favor de lhe dar limonada
E digam que fui eu
- Que não estive no "Orpheu" -
Quem lhe rogou a praga

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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PARA ALEXANDRE O'NEILL

"Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse..."
(Alexandre O'Neill)

também bebo demais e rio-me
das penas deste purgatório - não o de torga -
que construí para mim mesmo
tenho pesadelos terríveis em decorrência do álcool
sonho sonhos de necrotério
ainda ontem alexandre vi meu corpo nu
exposto na morgue
acordei suando frio
fui à janela e olhei para o céu
havia uma gorda lua cheia debochando de mim
pela manhã tive a certeza de que continuava vivo
olhei meu rosto no espelho
e reparei que meus olhos estavam mais tristes
do que de costume
a puta da minha vida tem disso
as mulheres me roubam a consciência de homem
nessas horas queria ser o poodle da minha vizinha
come bebe ignora o tempo e vive cercado de mimos
esta vida do caralho está sempre a nos dar bananas
agora dei de beber pela manhã
gosto do desprezo com que me olham no bar
o sofrimento para mim é um vício que não vou largar nunca
escrevo meia dúzia de poemas e me dou por satisfeito
tenho a capacidade de morrer quando quero
mas o porteiro do prédio onde moro não sabe disso
minha vizinha diz que sou louco
de vez em quando até sou
(louco de saudade de mim)
sempre quando converso comigo acabo em discussão
desculpe se o poema está ruim
amanhã cedo faço outro melhor

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 7 de novembro de 2009

PALAVRA ANCORADA

pesada e leve a palavra
quando ancorada no porto
sem a água que me lavra
a escura terra do corpo

nessa maré não rebenta
no ar a vela não corre
...tudo passa, nada tenta.

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Alexandra Cruz Mendes,
Guimarães, Portugal
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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

CANTO DE AMOR AO RIO DE JANEIRO



in voz:  http://www.clesioboeira.com/meump3/ESPEC-julio-canto-amor-ao-rio.mp3


Ao poeta José Silveira, amigo e irmão - consagro


a maior declaração de amor que tiveste
saiu da pena de um pernambucano
o gordo antônio maria - jornalista
cronista e compositor
que certa madrugada caiu fulminado por um enfarto
numa calçada em frente a um restaurante
em copacabana
na flor dos seus 43 anos
resultado dos incontáveis croquetes e empadas
regados a generosas doses de uísque
prazerosos venenos que podem fazer mal ao corpo
mas fazem um bem danado à alma

"Rio de Janeiro, gosto de você
Gosto de quem gosta
deste sol, deste mar, desta gente feliz..."

- rezam os versos do bom Maria em Valsa de uma Cidade

rio quanto não bebi do teu mar
rio amado rio
paulista que sou deixa-me chamar-te meu rio
não importa que me caia a maldição
da garoa da terra onde nasci

rio meu rio
quantas vezes meus olhos namoraram
teu cristo redentor à distância
teu cristo enormes braços abertos
convidado-nos a todos para um abraço de paz
meu pavor por altura impediu-me amar-te de perto
nunca andei no bondinho do pão de açúcar
mas conforta-me saber que o pai sempre perdoa
e abençoa o filho mesmo pródigo

lembro-me dos filés no lama's que não existe mais
amarelinho veloso antonio's
tudo é passado mas tão presente dentro de mim
o chope honesto
o luxo da vieira souto
a pobreza da favela
a beleza cheia de graça das tuas garotas de ipanema
hoje não tão garotas assim
méier arpoador barra leblon
tijuca jardim botânico
as casinhas humildes de olaria
quase todas iguais
os arcos da lapa -berço da malandragem que não conheci
o milésimo gol de pelé
saído de uma penalidade contra o vasco da gama
só podia acontecer mesmo no maracanã
o maior do mundo

amo-te meu rio amo-te
amo-te mais do que o meu amor supõe
por isso rogo a são sebastião
em cujo dia consagrado comemoras tua fundação
que te guarde sempre das flechas da desigualdade
saravá são sebastião! okê odé!
por isso rogo a são jorge
teu padroeiro de fato
que te defenda do dragão da maldade
saravá são jorge! ogunhê!
por isso rogo a todos os santos e orixás
proteção a ti meu rio
saravá minha portela! águia guerreira
copacabana me engana
copacabana eterna princesinha do mar
amo-te meu rio!

(Obrigado, Silveira!)
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
declamado pelo poeta José Silveira,
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CENA FECHADA

a reza guardada em meu peito
é como a bala plantada no teu
: flor vermelha aberta em grito

por debaixo das capas
os copos tilintam o silêncio
brilha a faca sobre a mesa
um foco de luz incendeia os olhos da musa

: tranco a porta e engulo a chave

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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AMACIANTE

O rosto de Beauvoir estampa o rosa-inessência
da camisetinha que estica-se atenta
à prosa
da ferrugem nos varais
Nota como as golas macho e fêmea
mais se abrem ofendidas quando o engulho
de um pescoço exasperado vem e venta
ele não reivindica
chove antes

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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NERUDA

depois da fabricação do amor contigo
perdi-me em ruas diagonais, entre as pessoas cinzentas
e meu corpo ainda quente, sob a chuva

a água veio sobre mim, lúcida
sem que eu sentisse
o cais verde-arrombado frente ao rio
entre as pessoas cinzentas
e meu corpo ainda quente
depois da fabricação do amor contigo

e o rio dilacerava meu coração aberto
nas margens comprimidas do encanto-azul
despertando l'oeil de dieu, nossas ruas cinzentas
onde caminho só
sob a chuva

e tu sabes como sempre sinto esse perfume, como se fosse
um poema escrito por Pablo Neruda

depois da fabricação do amor contigo

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

PARA SABER QUE ESPERO

"O que pretendes me dizer?
Cuidado, filho, o chão alucina."
- Fabrício Carpinejar -

O excesso: tua fumaça sem filtro
que parte no dente um fio de rosário.
Espalham-se contas no chão e outras manhãs
cospem cinza em cortejo
à dor de enterrar tua dor na reza dos dedos.
Uma falha de unha agora
o excesso que foste nas mãos como duas estátuas
sem branco possível passado.
Como esfregar tuas mãos e dormi-las para sempre, ao mesmo tempo?
Aquilo que pousa na água transforma-se em poça
e umedece o caminho
de uma fissura no lábio esquerdo.
Há esperança onde desmorona uma escultura seca?
Que corredor interminável de ecos
diria a meu pai sem perder-me como um labirinto,
sem chamá-lo Pai, antes de tudo ou baleia perdida da outra?
Há esperança por último
Há esperança no meio da boca
Não disse ainda o início, há esperança.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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SONETO DE LOUVAÇÃO AO UÍSQUE

é sempre bendito este malte escocês
remédio da minha alma tão doente
doce equilíbrio de tanta insensatez
anjo bom em vigília permanente

se vez em quando me rouba a lucidez
é por culpa de eu ser um descontente
expulsa pra longe toda a timidez
fonte de paz se a guerra está presente

"cão engarrafado" - o chamou vinícius
e não me atrevo enfim a contestá-lo
o mais querido do rol dos meus vícios

bebo no copo puro ou no gargalo
e assim eu o saúdo dose em dose
sem medo que me mate de cirrose

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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de Ofício VI

O que você me der, nesta casa se aceita. Não agradeço, não. O dado não se agradece, antes vasculho atenta e uso. Uso que é pra vestir-me do outro, na sua intenção de ceder.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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de Ofício V

Um amigo no tempo sereno me reconcilia com o que estou por dizer.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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NOTA

enquanto eu lia
o jornal no quarto
ela estrangulava
seu cãozinho de pelúcia
no banheiro

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

HOMENAGEM A VINÍCIUS DE MORAES

Corria o Ano da Graça de 1913, quando a 19 de outubro Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes veio ao mundo no bairro da Gávea, Rio de Janeiro. Mas passou quase toda a infância na Ilha do Governador. E ainda na infância, acompanhado da irmã mais velha, foi ao cartório e - não se sabe como - conseguiu convencer o tabelião a lhe reduzir o nome. Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes ficou sendo Vinícius de Moraes.
Poeta, compositor e diplomata. Apóstolo da paixão e homem do mundo. Cassado de suas funções diplomáticas pelo ato institucional n° 5, o AI-5 de triste memória, por meio de um breve e estúpido despacho do não menos estúpido e cretino general Arthur da Costa e Silva, uma réplica de asno embrulhado em farda, segundo presidente da ditadura militar instalada no Brasil a partir de 1964: "Demita este vagabundo", dizia o despacho, misteriosamente desaparecido e até desmentido hoje pelos cúmplices da ditadura que ainda vivem.
Aposentado compulsoriamente, o "vagabundo" continuou sua missão, espalhando pelo mundo poemas e canções, porque do ofício de poeta nem a morte tem poder para demitir quanto mais um miserável general. Vinícius passou desta a 8 de julho 1980, no seu Rio de Janeiro, já não tão seu e um tanto diferente. Morreu na banheira de sua última casa, ao lado do amigo e parceiro Toquinho e de sua nona mulher, Gilda. Da morte em "O Deve e o Haver", ele escreveu: "Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/Sem saber que é a minha mais nova namorada." O jornalista José Castello, maior biógrafo de Vinicius, conclui seu livro "O Poeta da Paixão" assim: "Vinícius de Moraes viveu, amou, escreveu, cantou para fugir da morte. Para negá-la. Todos nós fazemos o mesmo. Mas só um se chamou Vinícius de Moraes."
Algo mais a dizer?

Júlio Saraiva

DOIS POEMAS DE VINÍCIUS DE MORAES

SONETO DO AMIGO

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Los Angeles, 7/12/1946

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HISTÓRIA DE ALMA

Meia-noite. Frio. Frio em tudo
E mais frio que em tudo, frio na Alma
A Noite grande e aberta... A Alma grande e aberta...
Infinitamente frias...

No alto a noite má seguia a Alma que vagava
Enregelada e nua entre todas as almas
Seguia a Alma presa
Presa por todos os lados
A Alma caminhava e a noite caminhava com ela
A Alma fugia e a noite perseguia a Alma
E a Alma parava. Então a noite também parava
E mandava um frio mais frio do que a Alma

E a Alma já fria tornava a caminhar
E a noite vinha e perseguia a Alma
E a Alma parava... e a Alma parava...
E chorando ajoelhada pedia perdão...

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Do livro Jardim Noturno,poemas inéditos.
Organização e seleção de Ana Miranda,
Companhia das Letras, São Paulo, Brasil,
1993.

POEMAS PARA VINÍCIUS

DO POETA MORTO

Da vida esta aventura sem ventura,
Parte o cantor legando-nos seu canto,
E a morte surge como surge o pranto
Na face da paixão que inda perdura

E do silêncio que se faz ternura,
E da alegria que se faz espanto,
A rua desmanchada no acalanto
E o verso-estrela numa noite escura.

Parte ficando em tudo quanto amou,
Nos gestos que sangrou de veia aberta
E na canção dos corpos que habitou.

E aquele que do amor fez sua vida,
Conquista na paixão que lhe desperta
A morte essa mulher desconhecida!

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Paulo Bomfim,
da Academia Paulista de Letras,
São Paulo, Brasil
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RIMAS

Rimei Vinícius com vícios,
mas não foi por ser cobarde,

só que estava num hospício
e eram muitas da tarde

ali à espera das drogas
para cuidar das maleitas

e apareceu-me de toga
uma pomba tão escorreita,

tão negra, com tais arrulhos,
que caí no precipício:

e afrontei os engulhos
e encontrei o Vinícius.

Só que os vícios do Vinícius
não são vícios, são virtudes:

e até rimam com solstícios,
violões e alaúdes

e baladas, violinos
elegias, tanto mais...

(Apesar do "gato morto"
só não rimam com ataúdes).

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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O TIJOLO
para Vinícius de Moraes

anda um homem
feito besta
a dar cabo do coirão.
tijolo em cima
de tijolo
constrói mais um prédio
para o patrão.
enquanto o operário
se alimenta
com barro e pó
o patrão usurário
enche o bucho
a lagosta e pão-de-ló.
dizer sim
a tudo o que
quer o patrão
é sua sina
sem nunca
poder dizer não
aos que lhe
negam o pão.
e tijolo,
após tijolo
o operário prossegue
a sua construção.
lutando por
permanecer de pé,
pegando a vida
pelos cornos.
até que pelas costas,
um tiro lhe dão.
e porque deixa,
de tijolos fazer,
oferecem-lhe
como prémio
um espaço
entre meia dúzia
de tábuas.
dão-lhe enfim
descanso!
deixa de ser
escravo,
porque hirto,
gélido
e sem qualquer
préstimo
para tijolos fazer.
agora,
resta-lhe aguardar
pelo patrão
numa terra onde,
(porque iguais são)
lado a lado
ficarão eternamente
a fazer... tijolo.

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Eduardo Roseira,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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PRESENÇA DE VINÍCIUS

"Porque hoje é sábado."
- Vinícius de Moraes -

entro na sala e encontro o poeta
juntos erguemos nossos copos
e brindamos saúdes antigas

o poeta fuma
eu fumo também como se cumpríssemos
a um ritual secular
- cedo demais para beber e fumar tanto...

o poeta se ajeita na poltrona e ri
vinícius não morreu - concluo
hoje não
hoje vinícius não pode morrer

vinícius está bem vivo aqui comigo
na sala
vinícius bebe e fuma comigo
na sala

vinícius respira tranquilo
ao poeta hoje
não é dado o direito de morrer

acordem as amadas
todas as amadas
e as mal-amadas também

hoje não é dado ao poeta
o direito de morrer
porque hoje é sábado

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

de Ofício IV

Reativa, eu me firmava, muito em contraosso ao que seja pró-atividade, palavra asquerosa de terno, gravata e vaselina. Depois dei por mim nessa imprecisão, que minha única ação genuína é agressiva. Lama da grossa, preta de suja, pura de imediata. De resto, eu não me afeto na hora, me ajeito no atraso. De resto, eu me acumulo mais tarde, eu sou depois do chá. Sou depois do expediente dobrado.
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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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de Ofício III

Fui sempre tão tímida que se me mexo na vida e vivo é por puro descaramento meu.

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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QUANDO CAMÕES LER A MINHA LÍRICA

Quando Camões ler a minha lírica
De estética forçada à ironia
A nossa época vazia
Será adivinhada.

Nem grandes, nem pequenos.
(Vivemos ao alcance do olhar.)

Tudo aquilo que temos
É - pela frente -, o mar.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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EXTRA MUROS

acordou às cinco, às seis rezou no parque, às dez enfrentou fila no banco. conformada, voltou ao apartamento, conferindo o dinheiro. quieta, meteu-se em tarefas domésticas. e foi aí que se lembrou de Teresa de Ávila, a grande doutora da igreja, em suas atormentadas reflexões místicas: "Deus está presente até nas panelas..." nas panelas, ela disse consigo mesma, enquanto engolia o almoço de quiabo com carne. "Deus está presente até nas panelas... tardezinha, escutou confissões atormentadas, deu conselhos, profanou, sentiu vontade de rezar, como o fizera de manhã, mas não no velho Livro de Horas, cheio de culpas e arrependimentos, que jazia no criado-mudo. quis rezar, sim. por isso foi à estante e apanhou Garcia Márquez, o seu anjo Gabriel. leu, bebeu frases e imagens, sentiu comichões na alma. chorou um pouco e compreendeu, pela primeira vez, a rigidez da vida extra muros.

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Rosangela F.C. Borges,
São Paulo, Brasil
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O MONGE

vai em passos lentos o velho monge
a caminhar pelo jardim do claustro
seus olhos estão cansados
as lentes dos óculos gastas
de percorrer os mesmos caminhos feitos de silêncio
as páginas do seu breviário não suportam mais
as mesmas orações o mesmo latim

vai em passos lentos o velho monge
não se recorda mais como foi a primeira vez em que
penetrou nos mistérios da clausura
não se recorda mais o dia da profissão dos seus votos
perpétuos - castidade obediência e pobreza
não se recorda mais quando recebeu do abade o livro com as regras
escritas por são bento - o pai fundador:
-"Escute, meu filho, os preceitos do mestre
e incline o ouvido do seu coração."
o velho monge não se recorda mais também do nome secular
o nome que lhe fora dado pela família quando estava no mundo
não se recorda mais... faz tanto tempo - melhor não recordar mesmo

vai em passos lentos o velho monge
tantas vezes foi preciso lutar contra os desejos da carne
tantas vezes castigou o corpo na solidão da cela
tantas vezes abafou o sorriso dos lábios
porque do sorriso deus não se agrada
tantas vezes durante os pesados jejuns da quaresma
despejou cinzas no prato para tornar intragável
o sabor do parco alimento servido

vai em passos lentos o velho monge
entra no cemitério do mosteiro
olha as sepulturas todas iguais - apenas uma cruz e um nome
martinho beda plácido basílio
todos nomes de santos da sua ordem
adotados pelos irmãos séculos depois
todos repousam ali onde ele repousará um dia
quantas sandálias são necessárias para chegar ao reino dos céus?
que julgamento deus fará dele se não foram raras
as vezes em que seu pensamento se desviou
para as coisas do mundo
quando devia estar voltado para o Livro de Horas
quantas vezes profanou durante o Canto Gregoriano?

vai em passos lentos o velho monge
algo estranho lhe invade a cabeça
sente nojo de deus sente ódio de deus
se pudesse assassinaria deus agora mesmo
agora mesmo
agora mesmo
foda-se o reino dos céus
foda-se deus
se pudesse...
mas como não pode culpa-se mais uma vez
retorna ao jardim do claustro
e resignado prossegue a leitura do seu breviário

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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ILUSIONISMO

As mãos
traga ao trabalho do peito
só em parede abre
a amplitude de si para o travo quente
branco, pai, que espora aflita
acolhe este cego em delírio
:o rio, o curso d'água no tronco
também um tronco altivo no seu carvão
torce
desenha a pedra plena onde nasce a zebra
ela ergue-se limpa
some
ao seu comando

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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sábado, 31 de outubro de 2009

DE OFÍCIO

I

Agora me porto assim, rindo tanto. Em criança não tinha obrigação qualquer com a felicidade e, ria nada, porque era feliz na minha insuposta liberdade de nada. Hoje sorrio por má-criação, mais das vezes, o que vai bem, muito bem com a liberdade de ser amplamente, não de me ser, como eu suponho, nos detalhes.


II

Filho não tenho. Julgava-me pouco amorosa até para acalantar um poema. Hoje tenho muito amor mais muito medo, como um jasmineiro, sendo o cheiro o extremo do primeiro afeto e no segundo extremo, sua cor. Ainda penso que a flor, quando extremo, fica melhor fora, na natureza ou em vaso, não dentro.


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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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ELEGIA

minha alma
é uma mulher viúva
que não conheceu
marido
por isso vive trancada
no quarto de dormir
a derramar
lágrimas de alfazema
pelos filhos
que não vieram

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

VÁ-SE V.EXA FODER

Por favor, vá-se foder.
Tenho para mim que será um prazer
Que, por certo, não negará
Ir-se V.Exa foder
Desde já.

Nossa impaciência tem limite.
- Igual à do bolchevique -
Que mandou foder o Czar.

(Para depois cair a pique
No trama do bem estar.)

Vá. - É do interesse geral.
Sendo homem, porte-se como tal.
E vá-se V.Exa foder.
Desde já.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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PROSA PARA MÓNICA

Tu sabes, Mónica,
Da minha predilecção pelos poemas curtos.

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

POEMA SINTÉTICO

I

1 pombo
cai ferido de morte no
chão
da praça

2 meninos
de suas bicicletas
assistem ao debater
agonizante
das penas

a poucos metros
sentado
num banco de cimento
1 poeta observa


II

o pombo
ferido acaba de
morrer no
chão
da praça

os meninos
em suas bicicletas
se afastam do inútil
amontoado
de penas

num maço de cigarros
vazio
o poeta escreve algumas
palavras

(parece que vai nascer
1 poema)

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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CECÍLIA EM PARTE

Cecília vai recomeçar a partir desse aqui
entretém os cabelos em cima
martela na nuca firme

(as vontades lá)
no breve corrente de água
pausa uma poça em saudade
logo se limpa Cecília
de cima à pressa raiz
ela parte
suspende-se um pouco encara prédios
se lixa
decora dos parapeitos
o curso dum salto quase
rente não vai cair
recomeça
pousa uma palma entre o colo do peito
interrompido e a tinta
vai entre o peito e uma interrompida loucura
o veio não-concluída expira só
expira
azul só Cecília
seis entre sete pecados
menos luxúria
quando Cecília nos deixa aqui
faz a cobiça
dos homens meios que ainda teria

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Adriane B.,
São Paulo, Brasil
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ENSAIO SOBRE O AMOR

o amor dura sempre enquanto arde
e mesmo quando as cinzas já estão frias
o amor nem é cedo nem é tarde
o amor nunca tem as mãos vazias

o amor qual relâmpago à solta
atravessa a galope o coração
(e deixa tantas vezes a revolta
na boca e na lava do vulcão)

o amor pode ser o desengano
ou o delta de um rio até ao mar
o amor que se veste sem um pano
e apetece despir e mergulhar

o amor permanece enquanto houver
sede e fome entre o homem e a mulher

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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A FUGITIVA

apresentei a ela alguns poetas
muitos já estavam mortos mas respiravam
nas páginas dos livros que escreveram
mostrei a ela como é fácil
ter uma estrela de estimação por perto
e uma lua sempre à mão
para acendê-la nas noites escuras

dividi com ela o ar
e mais ainda: levei-a até ao cais secreto
onde dormem os navios perdidos
mas não me culpo por nada disso

um dia ela foi sozinha ao cais
(conhecia o caminho e também as marés)
embarcou num desses navios perdidos
e nunca mais deu notícia

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ELEGIA A NÓS DOIS

não há ossos partidos
não há cinzas
só o frio das palavras expulsas da boca
um solo de adeus que constrange
um olhar escondido em nuvens
chuvas que machucam a memória dos livros
páginas que não lemos

não há ossos partidos
não há cinzas
só restos de alegorias sobras de carnavais
& medos
velhos pierrôs exibindo sorrisos estrangulados
olhares antigos anunciando a cegueira
sei que as malas já estavam prontas
mesmo quando a ideia de partir não havia
urubus rondavam a casa
voos incertos além muito além das asas
coelhos fugiam da cartola
para desespero do mágico

não há ossos partidos
não há cinzas
também não há remorsos presos na gaveta
a escrivaninha de cedro guarda segredos azuis
de canetas que não escrevem mais
as folhas de papel em branco
o silêncio amontoado das coisas que ficaram por dizer

não há ossos partidos
não há cinzas
não há nada
além do retrato feito a carvão
de um capitão bêbado
o cachimbo no canto da boca
o olhar sujo de quem não dorme há anos
querendo dizer que o atlântico é bem maior
do que qualquer adeus

o capitão está certo
do mar nunca se sabe
- navegar é impreciso

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Júlio Saraiva
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

OS TRÊS SONETOS DO HOSPÍCIO

I

(farmácia)

LEXOTANDIEMPAX
LORAXDIAZEPAN
LOTADIAZEPAX
LEXORAXDIEPAN

PANLEXOTAPAX
PAXDIALORAPAN
DIELEXOZEPAN
LORAPANLEXOPAX

LEXOLORAZEPAX
PAXLOTANLEROPAN
DIEMLEXORAPAX

LEXODIAZEPAX
ZELOLEXOTAPAN
LORALEXDIE(M)PAX


II

cachorros magros atravessam esta tarde
os punhais da morte riem-se à minha frente
trago hospitais & igrejas velhas na memória
paguei bem alto o preço da minha loucura

agora é tarde muito tarde para negar
a estrela ferida no cio me convida
uma mulher chora sobre o meu corpo morto
ela tem o rosto todo roxo de pavor

eu só desejo juntar-me aos cães nesta tarde
nesta tarde sinistra onde tudo é lembrança
identifico-me como o meu assassino

cinza meu terno de louça partiu-se ao meio
mas muito me alegra estar no pátio entre os loucos
quero que o passado se foda... nesta tarde!


III

mais morto do que vivo num final de tarde
eu pisava lento o chão dos meus descaminhos
sentindo o calafrio próprio do covarde
ao ver-me assim defunto todo envolvo em linhos

supliquei aos céus: - Não quero anjo que me guarde!
de um velho sábio roubei 7 pergaminhos
prestei honras a dante charles & leopardi
tocado pela força mágica dos vinhos

blasfemei os santos & profanei altares
quando me perceberam fora do juízo
as putas me acolheram em seus lupanares

caí de vez no mundo sem deixar aviso
loucos & vagabundos foram os meus pares
nos quintos dos infernos fiz meu paraíso

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Júlio Saraiva
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CASO PERDIDO

às vezes esqueço que sou mulher, vivendo aqui no brasil. entro num bar qualquer. peço uma bebida mais forte. bebo num gole só porque esquenta mais rápido. acendo um cigarro. e viajo. tenho diante de mim o mar de ipanema. cresci olhando o mar de ipanema. bebo mais um. talvez fique bêbada. tenho me embebedado rápido ultimamente. machos de merda, encostados no balcão, não tiram os olhos de mim. acham que vão me comer. visto-me assim: jeans surrados, camisetinha regata, tênis sempre sujos. os putos colam os olhos na minha bunda. carinha, uma mulher não é só uma bunda. uma mulher sonha também e gosta de ser amada. foder é uma consequência. filhos da puta, vão se aliviar nos banheiros podres das pensões onde moram, lá no cu da praça mauá. no fim do mês, quando recebem, despejam tudo nas putas.lágrimas começam a correr dos meus olhos. quando eu tinha 15 anos e apareci com um dragão tatuado nas costas, minha mãe, chorando, me disse, Bárbara, você é um caso perdido. eu me tranquei no meu quarto e chorei um pouco. meses antes de me mandarem pra frança, minha mãe achou metade de um baseado e duas camisinhas dentro da minha mochila. chorando de novo, ela tornou a me dizer, Bárbara, você é um caso perdido. só que dessa vez eu não me tranquei no quarto e nem chorei, certa de que eu era mesmo um caso perdido. dois anos depois, quando eu voltei de paris, grávida de um homem vinte anos mais velho, minha mãe teve um ataque e gritava, Bárbara, você é um caso perdido e ainda por cima virou puta. também não me tranquei no quarto e nem chorei. fiquei até orgulhosa em saber que eu era a vergonha da família. quinze dias mais tarde, comecei a passar mal. quando me disseram que meu filho havia morrido dentro de mim, eu chorei muito, queria morrer com ele, e aí então eu mesma disse pra mim: Bárbara, você é um caso perdido. minha avó disse que era castigo de deus. então eu senti nojo de deus, queria que deus morresse. matei deus pela primeira vez. minha irmã mais nova me emprestou seu colo pra eu chorar. e foi daí que eu descobri que nem tudo estava perdido e gritei, Bárbara, você nunca foi um caso perdido. eu tinha dezenove anos. e o mar imenso de ipanema se oferecendo pra mim, como agora.

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Annabárbara Lins,
Rio de Janeiro, Brasil
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ANTECEDENTE

copo-de-leite preso em castanho
:alto silêncio
desde a garganta
bate
solta suas partes - pluma conhaque
pausa pela folhagem
um arrozal fica bom, fica várzea
nada demais machuca a invenção do risco

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Adriane B.
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BREVE RAIO X DO POETA

para Domingos da Mota e Eduardo Roseira,
numa roda d'amigos - consagro


o poeta não é o samba
o poeta não é o fado
o poeta não é a zoeira
o poeta não é o enfado
o poeta não é a verdade
mentira também não é
o poeta é foda
o poeta é fato
pé de sapato esquecido
resto de dicionário
palavra fora de uso
o poeta não faz seu destino
tanto fala pela boca
como pelos intestinos
o poeta não fará a revolução
o poeta é um filho da puta
o poeta é um serviçal
o poeta é um vagabundo
que rima raimundo com mundo
mas não traz a solução
o poeta é uma sentinela
guardião de almas penadas
o poeta é um porralouca
o poeta não é porra nenhuma
o poeta é um sacripanta
violador de meninas
tocador de violoncelo
numa sexta-feira de chumbo
o poeta é a puta que me pariu
por detrás dos muros da morte
o poeta não é bravo nem forte
e nem um mar de velas pandas
o poeta não é bandeira
pessoa também não é
é só um sujeitinho à toa
que cai no meio da rua
o poeta é um viado
pecado capital da palavra
é um animal sem sorriso
o poeta é o funcionário público
de gravata suja e surrada
dizendo pois-não-obrigado

o poeta subverte a ordem
atenta contra os bons costumes
o poeta cospe no chão
o poeta caga na rússia
e declara amor ao japão
o poeta adivinha a lua
o poeta vai ao comício
o poeta foge do hospício
o poeta morre de enfarto
aos pés da primeira mulher
sem que o jornal noticie
o poeta...
de uma vez por todas
sejamos sinceros
: o poeta ontem ia bem - obrigado
hoje não mais

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Júlio Saraiva
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domingo, 25 de outubro de 2009

ELEGIA DE CORPO PRESENTE

o guarda-chuva
jaz
em suas
varetas

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Júlio Saraiva
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PRETENSO HINO A LORCA

Há que se reconstruir esculturas
Com ferros de tanques de guerra.
Olhar de cara limpa destemida
Para a Luftwaffe,
Enquanto se come a lama da terra.

Há que se saber do amigo
Nos braços vomitando
Coragem, desgraça, sujeira.
Há que se saber da garganta
Chupada
Pelos dedos apodrecidos,
Do fedor das gangrenas,
Dos rádios sem antenas...

Há que se verter brio dos olhos
Para além de poemas-poemas.

Há que se desenterrar
Das sepulturas opressoras
Os quadros tingidos à sangue.
Há que se experimentar,
Ao menos uma vez na vida,
O horror das rachaduras
Dos pés desfraldados,
Até os joelhos no mangue...

Costurar a cabeça no pescoço,
Redesenhar os tantos sorrisos,
Estancar as feridas vazando dor
Há que se ser: também é preciso.

Há que se repintar as bandeiras
Mofadas das pátrias amadas, irmãs
(Irmãs?)
E cravá-las nas mentes
Vadias, sãs, vazias...

Há que se escrever poesia,
Explodir farsas e glórias,
Recontar história.

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Edílson José
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DESPEGO

cacho de menos-memória
uva metálica oscila entre pó
baga de brilho
peso infecundo à terra

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Adriane B.
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LUSCO-FUSCO

Entre a noite e o dia, há um tempo
que parece num beco sem saída,
que não vê, não repara no momento
em que nasce da mesma outra vida;

é um tempo, melhor, quase um destempo,
entre o escuro e a luz da madrugada,
que vira e revira o pensamento
e chega ao limiar do próprio nada;

é um tempo de insónia, cujo peso
se arrasta por vielas, sem perdão
(tal um cão açulado quando preso
e que ferra ao dono a sua mão);

é um tempo de sombras, baço, brusco,
acoitado detrás do lusco-fusco.

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Domingos da Mota,
de Vila Nova de Gaia, Portugal
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http://fogomaduro.blogspot.com/





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sábado, 24 de outubro de 2009

UM VALOR: A VESPA

cruzam na lenta pernas e música:
tempo nublado, vez de limpeza
vespa pra fora dos bolsos, cabelo cacheado, chave, sudário,
letra e se?
e
se (pergunto)
desces o zíper
paga a mentira, ora, obrigada
dobro essa nota de trinta
falsa bem-vinda
poema na mão a zunir

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Adriane B.
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POR FALTA DE ADEUS NÃO SERÁ

aprendi aos trancos
nos trinques
sem meias medidas
nos drinques
às vezes tenho vontade
de desocupar meu lugar
no espaço
deixar pra quem fica
um abraço
& bater minhas asas
mas sabe como é
a conta do gás tá sempre
atrasada
& eu percebo então
que não é como se pensa
tão duro
viver & respirar no
escuro
a gente controla o ar como pode
se sacode & se fode
& recua & reclama
enquanto vai adiando
o último ato do drama
pensar muito pode me fazer
mudar de ideia
me arranje mais um cigarro
o silêncio meu bem
é a minha plateia
não me leve a mal
quero ficar por aqui
no meio-fio parado
esperando fechar
o sinal

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Júlio Saraiva

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CRÔNICA

fêmea luz aquece
a cabeça calva do dia

mulheres & homens
são espectros milenares
brincando de assombrar uns aos outros

as crianças correm
& fazem previsões
do futuro que as espera

os cães ladram como se tentassem
remendar o mundo

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Júlio Saraiva

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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CAMINHÃO DE MUDANÇA

Deixaram espólio
O choro - peso dos bens - não houve

Descalço por alamedas
Só,
Bêbado,
O olho fiel
e burro corre
cai à privação
sem latido de morte no estômago

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Adriane B.

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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

SERVE-ME

Toda tua terra molha a desordem cobre e para
Provo aos bocados de um gênero ácido
Chove essa insatisfeita por força chinesa, louça, ladra
Certa e lama, a palma sobe
quando anoitecem quintais pelos rumos do arame

Consigo ver, se não ouço a música
A palma agulha
Dois dos sentidos forçam-me a cata de três
se um era teu, nada sabe
no passo foi-se travando à urna virando falha
Ainda a ciranda da véspera queima, muge a memória
de um outro homem
Consigo ver, se não ouço a música
Qualquer música apaga a certeza de um manco
Serve-me aqui de chão serve-me perna ou me alastro
Um vento dissimulado, por tudo,
esparge a fuga

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Adriane B.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

FILOSOFIA POLÍTICA

Estou farto da poesia
cheia de renda de bilros
tricotada bonitinha
a alancear a vidinha
com porosos atavios

ou cedilhas timoratas
amarrotadas sem viço
cabisbaixa de alpargatas
e de olhos sempre de gatas
entre a dor e o derriço.

Ai do lirismo que arrima
e nem é carne nem peixe
pois um poema sem espinha(s)
virgulado picuinhas
é bem melhor que se deixe

de navegar no mar alto
no abismo dos sentidos
de atravessar o asfalto
de voar de ir a salto
pra mundos desconhecidos.

O poema deve ser
"uma pedra no caminho"
com as sílabas a arder
língua de fogo a crescer
e a morder até ao imo.

Mas se a mão o largar
numa toada vazia
desenfreada frenética
há que suster a poética -
e soltar a poesia.

Poetas abaixo a rima
(se ela for a prisão
onde o poema definha).
Estou farto da poesia
"que não é libertação".

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Domingos da Mota

a partir da leitura de dois poemas, respectivamente de
Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade

http://fogomaduro.blogspot.com/

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POEMA OCIOSO

nossos fantasmas apodreceram
há séculos estamos aqui
na mesma mesa de bar
procurando o desfecho desta balada
- a mais inútil e bela de todas que fizemos

nenhum milagre programado
as notícias do dia seguinte cochilam sobre o balcão
as amadas desaparecem do mapa
não deixam endereço mas mandam dizer
que vão suicidar-se no próximo ano
um bêbado pede licença
ergue o copo - e em nossa homenagem
tira uma porção de estrelas do umbigo

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Júlio Saraiva

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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

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na janela da sala
o Guardião dos Ventos
tem uma música delicada
lembrança da China
país que nunca vi
mas sinto saudade

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Rosangela F.C. Borges

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terça-feira, 13 de outubro de 2009

ONTEM MARIA DA PENHA...

ontem maria da penha
era uma vez este fato
que me turvou toda a vista
e fez sangrar meu olfato
ontem maria da penha
escuta bem o relato
a pontapés e pauladas
mataram uma criança
como se mata a um rato

ontem maria da penha
era uma vez outra história
o motivo exato não sei
ando ruim da memória
ontem maria da penha
ali na rua da glória
com vinte e cinco facadas
joão matou madalena
depois fugiu pra vitória

ontem maria da penha
deu-se outro acontecimento
raimundo ia tranquilo
andando conforme o vento
quando encontrou a polícia
- Encosta aí, elemento!
raimundo tentou explicar
porém não lhe deram tempo
ontem maria da penha
um cabo mais um sargento
mataram raimundo a tiros
por estar sem documento

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Júlio Saraiva

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