“O universal é o local sem paredes.” (Miguel Torga) "Escrever é um ato de liberdade." (Antônio Callado) "Embora nem todo filho da puta seja censor,todo censor é filho da puta." (Julio Saraiva)

sábado, 30 de janeiro de 2010

A JANELA


espreito
e olho o rio.
há uma ponte
que me chama
para a outra margem.

dentro do meu peito
sinto um vazio,
ao olhar para além monte.
a saudade por mim clama,
como uma miragem.


eduardo roseira
VNGaia – Portugal

(Foto: "Janela com Património", de eduardo roseira)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

SONETO DE ANALICE

"Ah, mas eu preciso aprender a ser só..."
(Da canção Eu preciso aprender a ser só,
dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle)

ah se eu soubesse escrever uma canção
não te faria em forma de soneto
não rimaria o branco no preto
e nem mergulhava nas rimas em ão

já passei da idade do que é ter paixão
hoje se danço - danço o minueto
toco corneta fora do coreto
minha vida  -flor - hoje não tem razão

suspiro porém pelas minhas sedes
mas refém me curvo aos teus olhos verdes
sou pecado meu - nem um deus me disse

vida fora vou meio atordoado
pagando a culpa de nenhum pecado
se errei teu nome - ana alice? - analice

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

AI, MENTIREIRO

Andava meu senhor e cavaleiro
A cantar pelas ruas, estranho andor,
Suas façanhas. Mas de tão mentireiro
Era c'o vinho que se achava maior.

Andava meu senhor e cavaleiro
A esgrimir sua espada por amor.
Dizia ele! Mas era tão mentireiro!
Fingia dotes, forças, falso ardor
P'ra deixar sua dama no braseiro.

Andava meu senhor e cavaleiro
A gabar os seus dotes de valente
Mas era cobarde! Ai, mentireiro
Sempre de lado, nunca de frente.

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Maria da Conceição Roque da Silveira,
Braga - Vila Verde -, Portugal
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No Beco dos Prazeres
beijo a boca da mulher
que nunca mais verei
No Beco dos Prazeres
abro minha camisa branca,
como se desejasse abraçar o mundo.
No Beco dos Prazeres
vejo a paisagem do corpo,
como se descobrisse
o poema
entrelaçado nos dedos.
No Beco dos Prazeres
fico a adivinhar os presságios
que me caem sobre os ombros.
No Beco dos Prazeres
alimento a ausência de mim,
tento me descobrir
e me esqueço.

De 20 poemas quase líricos
e algumas canções para coimbra

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Álvaro Alves de Faria,
São Paulo, Brasil
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SONETO ÍNTIMO OU SEGUNDO AUTO-RETRATO

a mim mesmo, júlio saraiva, homem do mundo - e aos meus mortos, therezinha e jaime, meus pais, com saudade, que me deram liberdade para tentar ser gente  - a eles consagro.

sou o silêncio de um navio cansado
poço fundo de tantos pesadelos
mas sonho sonhos bons mesmo sem tê-los
: sou conde num castelo abandonado

mas assim vou vivendo no ora-veja
debaixo das cinzas de quarta-feira
e sabendo que a vida é brincadeira
dou-me a qualquer mulher - se me deseja

se penso frevo canto marcha-rancho
e rio-me de mim - sinto-me ancho
sabendo enfim que a merda desta vida

não me fez quixote fez-me sancho
e mesmo olhando a dor desta ferida
valeu-me minha vida - foi vivida


na mesa de um bar da condessa de são joaquim,
meio bêbado, em 28-01-2010, logo pela manhã
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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MARÃO

A Miguel Torga


atravessando estes montes
a perder de vista,
de pedra cinza agreste.

olhando além horizontes,
não há memória que resista
a gravar o verde que a serra veste.

eduardo roseira
VNGaia - Portugal

ELEGIA A NÓS DOIS

não há ossos partidos
não há cinzas
só o frio das palavras expulsas da boca
um solo de adeus que constrange
um olhar escondido em nuvens
chuvas que machucam a memória dos livros
páginas que não lemos

não há ossos partidos
não há cinzas
só restos de alegorias sobras de carnavais
& medos
velhos pierrôs exibindo sorrisos estrangulados
olhares antigos anunciando a cegueira
sei que as malas já estavam prontas
mesmo quando a ideia de partir não havia
urubus rondavam a casa
voos incertos muito além das asas
coelhos fugiam da cartola
para desespero do mágico

não há ossos partidos
não há cinzas
também não há remorsos presos na gaveta
a escrivaninha de cedro guarda segredos azuis
de canetas que não escrevem mais
as folhas de papel em branco
o silêncio amontoado das coisas que ficaram por dizer

não há ossos partidos
não há cinzas
não há nada
além do retrato feito a carvão
de um capitão bêbado
o cachimbo no canto da boca
o olhar sujo de quem não dorme há anos
querendo dizer que o atlântico é bem maior
do que qualquer adeus

o capitão está certo
do mar nunca se sabe
- navegar é impreciso

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

RITOS FINAIS

pintas camaleões nas folhas secas do meu jardim de outono
fazes muito bem
só peço-te não machuques o peixe-espada que não sabe mais
esgrimir porque o tornaste durante um século prisioneiro
no aquário escuro das nossas lembranças

preparas os sais e os aromas para o ritual do teu banho
tão logo os primeiros galos acordem a manhã
anunciando a minha  morte
fazes muito bem
só peço-te não apagues do meu rosto as chuvas que caíram
pesadas em londres ou paris - não me lembro ao certo -
naquele ano de 1911 quando eu vivia de tocar violino nas gares
em troca de moedas para garantir miseráveis côdeas
de pão e uma pequena parte de vinho

ajeitas o trapézio no ponto mais alto que a tua imaginação convém
fazes muito bem
só peço-te para fechar os olhos quando eu cair estatelado no asfalto
depois da vigésima quinta pirueta
sem que nenhum aplauso me faça despertar

aí então aproxima-te do que de mim ficou e cobre o meu silêncio
com os sorrisos e as cinzas que juntaste
ao longo dos nossos quarenta e quatro últimos carnavais

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O SORRISO

Beijo os lábios da fonte pra beber
o sorriso que brota dos seus olhos:
trago a sede e a fome de o ver,
de sentir um sorriso sem antolhos

que me encharque de luz como se cego
levado pelo faro do seu cão,
sorriso que ilumine e aqueça o ego
tal como se massaja o coração.

E na bica da fonte apuro o fio
que sacia e refresca o pensamento,
por vezes é a chama de um pavio
que resiste apesar de tanto vento:

e assim alimento e mato a fome
quando a sede é demais e me consome.

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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domingo, 24 de janeiro de 2010

EU NÃO QUERIA SER NENHUM POETA...

eu não queria ser nenhum poeta
até porque nunca tive sonho algum
que me levasse a vida em linha reta
da maneira como leva a qualquer um

se eu mostrasse minha mágoa secreta
seria tão somente mágoa comum
a mágoa de quem tem no peito a seta
que de repente mata e me faz nenhum

mas poeta nenhum eu queria ser
sonhar muito menos eu desejava
: brincar com palavras - prefiro morrer

: morte morrida ou morte bebida
pouco se me dá - nada tive em vida
quero que esta vida enfim vá se foder

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 23 de janeiro de 2010

primavera...

a primavera
amanheceu triste.
só o teu sorriso sol
lhe dava algum brilhar.

nesse dia
respondeste ao apelo
que te fizeram
os anjos tristes...

...partiste
com um sorriso
de até breve...

“...porque os anjos precisavam de sorrir! “

eduardo roseira,
Gaia - Portugal
In: "o sorriso de deus"

AUTO-RETRATO

Ando sempre com a sensação
de estar à beira de um colapso.
Mas sei que isso faz parte
da brutalidade cotidiana.

Enquanto não dou um fim a tudo,
me submeto à própria
vontade de existir,
como se tudo fosse normal

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Álvaro Alves de Faria,
São Paulo, Brasil
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O CANIVETE

Para Álvaro Alves de Faria, meu amigo


com a ponta do canivete
que  minha amiga trouxe da suíça
ponho-me a espetar o poema

o canivete é o meu brinquedo
e o poema o alvo que procuro
divirto-me como um assassino frio
olhando o sangue que escorre lento
do coração das palavras
como se cada uma delas
fosse vítima do seu próprio significado

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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OS AMANTES SEM DINHEIRO

Vem beber café comigo
prometo não largar a tua mão
quando fugirmos sem pagar a conta

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Bruno Sousa Villar,
Portugal
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POEMA (inventado) DE ANTÓNIO BOTTO

Amar-te
Em toda e qualquer parte
Por saber-me inventado
É fodido
Ou é arte?

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Mario Osorio,
Lisboa, Portugal
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

MEU VERSO...

"Meu verso é minha cachaça."
- Carlos Drummond de Andrade -

meu verso é capim seco
não há chuva que o console
meu verso brota do esterco
eu o bebo de um só gole

meu verso é feito de urânio
meu verso é feito de urina
meu verso é feito de esperma
meu verso é porrada no crânio
nunca sei onde começa
nunca sei onde termina

meu verso é de pouco riso
meu verso é melancólico
às vezes pode ser lírico
mas quase sempre etílico
tem alto teor alcoólico

meu verso é alma penada
a vagar pelo cemitério
cantiga desafinada
caso pra lá de sério

meu verso só não é mentira
e calmo registra em vídeo
queira ou não queira a lira
imagens do meu suicídio

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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POEMINHA BOBO

Pra Você

gosto de ti tanto tanto e tanto
que vejo na luz dos teus olhos
a luz do olhar de um santo

gostas de mim tão pouco
mas tão pouco que enxergas
no brilho dos olhos meus a treva
que mora no olhar de um louco

ah esses gostares que matam a gente...
esses quereres e não-quereres
roubam-nos assim de repente
todo o nosso juízo a tal ponto
que esquecemos dos nossos deveres

mas consciente ou inconsciente
a vida meu bem a vida
sem que se perceba
segue em marcha segue em frente

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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CANÇÃO DO PURGATÓRIO

para Cristóvão Siano, meu amigo

"E temei o dia em que nenhuma
alma poderá advogar por outra,
nem lhe será admitida intercessão
alguma,  nem lhe será aceita
compensação, nem ninguém será
socorrido!

- Do Corão, 2ª  Surata , 48-


quando o anjo bom veio buscar minha mãe
e ela já não tinha mais nenhum sorriso nos lábios
- era só um rosto de cera
descobri que todos os mortos são iguais

morta como todos os mortos minha mãe
não reagiu à estrutura imposta pelo silêncio
só por isto acreditei no silêncio
na medida em que a morte dói
mas só nos pede silêncio

queria rir queria beber e fumar maconha na esquina
assim mais ou menos como eu fazia aos quinze anos
mas o anjo bom que veio buscar minha mãe
teve paciência para me avisar que eu já não tinha
mais quinze anos e o barco se toca conforme o rumo dos ventos
só que vivi sem aprender o rumo dos ventos

pedi ao anjo uma audiência com deus
mas deus estava dormindo e nem se deu conta
que o anjo bom havia levado minha mãe

(nunca é bom acordar o dono do mundo nessas horas
: é preciso que ocorra o desenlace  - penso comigo -
para que deus se dê conta nessas horas)

quando o anjo bom veio buscar minhas mãe
sei que ele se aproveitou da ausência ou do sono de deus
e eu pra não lavar as mãos como pilatos
chorei minhas culpas e percebi que minha morte
ia junto com minha mãe
e naquela hora reclamá-la seria impossível
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Canção do inferno

Vou contar-vos um pouco
Um pouco de mim
Nem sonham o quanto pequei
Para chegar aqui

Deus fora
Nada vivo

Deus fora
Dia quente no alpendre

Lábios queimados
No beijo ao leite-creme

Tudo é caramelizado

Sirva-se uma fábula

Sou alpinista
Escalo pilha de nomes

Adense-se o mistério

Sou transformista
Dêem-me lantejoulas

Há festa dos pés de barro
Em memória daqueles santos passados

Há orgias com manetas e pernetas
Pois são todos meus filhos

Sou costurado a cicatrizes
Foram partos difíceis.

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Cristóvão Siano, Portugal
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DIZEI-ME, SENHORA (poema- falso de D. Dinis)

Dizei-me, Senhora
O que é isto que me devora
Se venho em boa hora
Se me quereis escutar

Penso e não sei que pensar
Das mil cousas que sinto
& a mim próprio minto
Tal é o meu pesar
Que, por deus, Senhora
Se me quereis escutar
Se venho em boa hora
Se aqui me estou agora
É tudo por amar.

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Mário Osorio,
Lisboa, Portugal
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MEMÓRIA

o rosto esmaltado daquela
menina nascida em londres
no ano da graça de 1894
em relevo na tampa
da lata de caramelos
ficou preso na armadilha lilás
da minha insônia

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

PARA LER OUVINDO UM TANGO

gosto quando me fisgas com as tuas fugas
e sem querer querendo corres e me escapas
procuro-te em vão nos imaginários mapas
perdidos no meu rosto coberto de rugas

tal como num tango me sangras e me sugas
envolves o meu corpo nessas negras capas
tecidas em cetins ou ordinárias napas
restos de funerais que por bom preço alugas

gosto quando me matas a lentas facadas
e no dia seguinte surges em sorrisos
depois de reduzir-me a todos os nadas

me cobres a boca  com beijos tão precisos
oferecendo-me o bom mel das madrugadas
que eu faço que apago todos os prejuízos

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 17 de janeiro de 2010

DEUS BRASILEIRO

"Ai, abre as cortinas do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado..."

- Ary Barroso, in Aquarela do Brasil

o meu deus é brasileiro
não chegou em caravela
veio num navio negreiro
de luanda de benguela

o meu deus é brasileiro
fala nagô fala tupi
pois que tupã mais olorum
por bem fundiram-se num só
contra o mal do cativeiro
a mesma dor nenhuma dó

o meu deus é capoeira
e de arco e flecha também é
é cipó pemba e aroeira
briga na mão briga no pé
não é deus de brincadeira
o que alimenta a minha fé
este meu deus não é de amém
este meu deus é deus de axé

deu-me sangue de floresta
e uma alma boa de tambor
coração lá na senzala
fez do sofrimento festa
sem esquecer nunca do horror
do tronco do pelourinho
e do maldito do feitor

o meu deus vem do quilombo
tá no chão não nos altares
não se entrega a qualquer tombo
manda tudo pelos ares
nesta terra de palmeiras
fez a história de palmares

o meu deus é deus de ginga
o meu deus é deus de jongo
foge pra lá diogo cão
mais respeito ao rei do congo

o meu deus é brasileiro
e vai do oiapoque ao chuí
é o deus de macunaíma
deus de ceci deus de peri
o meu deus é o de dandara
este meu deus é o de zumbi

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

SEGUNDO CANTO FÚNEBRE E INÚTIL PARA O HAITI (O RESCALDO, AGORA)


as manhãs estão morrendo a fome em porto príncipe
e o céu de porto príncipe não existe mais
enviar condolências não se faz necessário
os mortos não têm como recebê-las
e os que sobreviveram também estão mortos

porto príncipe está às escuras
como sempre esteve e viveu
como o haiti viveu sempre ignorado
miseravelmente ignorado
se é que viveu

não venham com orações agora
não tenham e nem sintam pena da mulher andrajosa
parada na esquina a chorar o filho morto
olhando o resto de casa que lhe sobrou
- se é que aquilo podia ser chamado casa

não se apiedem das crianças de lá
porque crianças nunca foram
tarde demais para  chorar os cadáveres
espalhados pelas ruas
não sintam também pelos soldados brasileiros
que morreram por lá: eram soldados e para isto foram formados
o governo brasileiro fará a todos uma homenagem qualquer
e depois os atirará ao lixo do anonimato
(eram só soldados a patente nesta hora não importa
: a morte não respeita patentes e nem estrelas)

quanto a este poema
podem ler sim
e depois por favor joguem seus versos no lixo
os poemas também foram feitos para o lixo

em porto príncipe tudo agora é fantasma
e nem deus nem os anjos baixam por lá

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

CANTO FÚNEBRE E INÚTIL PARA O HAITI


                                                                                          BBC Brasil

em porto príncipe agora
nenhum menino negro e miserável pergunta as horas
porque o tempo deixou de correr em porto príncipe agora
nenhuma mulher negra e miserável apertará o seio murcho à
procura da última gota de leite para dar ao filho faminto
em porto príncipe agora nenhum poeta escreverá uma
canção de amor e nem de protesto
em porto príncipe agora há um desenho de escombros
porque porto príncipe resume-se a escombros
porque em porto príncipe agora a hora já não existe
a vida já não existe
em porto príncipe agora quando nem o céu mais respira
e nem deus faz o menor sentido
nenhum poema será solução para porto príncipe agora
porque porto príncipe agora é porto príncipe ontem
só um cheiro de morte
em porto príncipe agora se espalha no ar
em porto príncipe agora
o presidente dos estados unidos vomita dólares
e faz um discurso quase comovente
e eu faço que acredito na hipocrisia
para porto príncipe agora
quando o povo do haiti está morto ou mais fodido do que
nunca
agora
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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QUANDO EU NÃO MAIS RESTAR...

para Adriane

amanhã
quando eu não mais restar
guarda o que sobrou de mim
no teu sorriso mais bonito
pensa que adormeci no colo
daquelas nossas manhãs azuis
quando mesmo no inverno
tudo era primavera

amanhã
quando eu não mais restar
escreve um poema de amor
sai sem dor na consciência
põe a tua melhor roupa
(de preferência aquele vestido verde
comprado para o natal)
e vai beber alguma coisa
pensando que tudo até valeu a pena
apesar dos meus muitos vícios
e virtudes quase nenhumas

amanhã
quando eu não mais restar
passeia os teus olhos nas estantes
conforma-te
sabendo que em cada livro há o toque
das minhas mãos
mesmo naqueles que eu nunca li
olha os santos de madeira
e descobre em cada um deles
o milagre que eu nunca acreditei

amanhã
quando eu não mais restar...

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

IN MEMORIAM

à minha Mãe

Desaba o sol, o silêncio,
a dor no coração da terra
comovida; na levada

do tempo, no rigor da noite,
para sempre, desmedida.
Desaba a luz, o sentido - a vida.

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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ELEGIA CURTA

minha mãe morreu no dia 10 de janeiro de 2010
às 2 horas e 45 minutos
segundo o atestado de óbito a causa da morte foi
falência múltipla dos órgãos

minha mãe morreu no dia 10 de janeiro de 2010
minha mãe era bonita e foi atriz de cinema
do tempo da vera cruz - a hollywood brasileira
mas morreu aos 80 anos de falência múltipla dos órgãos
foi às 2 horas e 45 minutos

minha mãe não respirava mais
e também era não mais atriz do tempo da vera cruz
o rosto da minha mãe de cadáver era sério
como o rosto de todos os cadáveres

às 17 horas de ontem
minha mãe foi sepultada no cemitério do morumbi
em são paulo
e a vera cruz  - a hollywood brasileira - já não existia
há muito tempo

(minha mãe morreu aos 80 anos de falência múltipla dos
órgãos
quando a vera cruz não existia mais
e o sorriso de minha mãe fugiu do rosto
: no caixão minha mãe era um cadáver como qualquer
cadáver)

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ciclo do doente

Tenho um fungo no meu peito
Causa espanto a quem se aproxima
Pois viro amor para dentro

E dentro, quero estancar hemorragia
Que me há-de consumir
Até deitar amor para fora

Mas fora, tentarei vazar olhos
Com imagens de gestos lascivos
Nesse quadro policromático do desejo

Desejo quando vem, também pode ir
E se vai, nasce um fungo no meu peito

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Cristóvão Siano, Portugal
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domingo, 10 de janeiro de 2010

O MENINO QUINTANA NO SEU CENTENÁRIO


"O mundo é um búzio oco,
menino...

Mundo de vozes perdidas
e onde o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas."

- Mario Quintana

estás vendo aquela estrela
a mais pequeninha delas
a zanzar de um lado ao outro
neste claro céu de verão?
meu menino tem cuidado
que a estrelinha rebelde
estrela nunca foi não
ela é o mario quintana
mais uma vez disfarçado
a nos acenar e dizer:
  - Vou muito bem,
                               obrigado!
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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BREVE ANTOLOGIA DE MARIO QUINTANA

XVII

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como único bem que me ficou!

Vinde, corvos. chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

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ENVELHECER

Antes, todos os caminhos iam
Agora, todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
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FATALIDADE

Em todos os velórios há sempre uma senhora gorda
que, em determinado momento, suspira e diz:
- Coitado! Descansou...
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BOCA DA NOITE

O grilo canta escondido...e ninguém sabe de onde
vem seu canto... nem de onde vem essa tristeza imen-
sa daquele último lampião da rua...

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MENTIRA?

A mentira é uma verdade que se esqueceu de aconte-
cer.
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VIAGEM

O fim do cigarro tem uma tristeza de fim-de-linha...
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Mario Quintana, Poesias,
editora Globo, Porto Alegre,
 Rio Grande do Sul,
Brasil, 2ª edição, 1975
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O MÁGICO MARIO QUINTANA


Conheci o poeta Mario Quintana (o Mario dele é sem o acento) numa noite de julho de 1978, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo. Ele, em companhia do romancista Dyonélio Machado, seu conterrâneo, veio a São Paulo fazer uma palestra. Foca que eu era (nome que se dá aos jornalistas em início de carreira), fui designado pelo meu chefe, o poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria, hoje grande amigo, a entrevistar o poeta, pelo extinto Diário de São Paulo.
Terminada a palestra, fascinado, como todo principiante, bloco e caneta na mão, dirijo-me ao poeta. Para meu desespero, ele nega a entrevista. Chego a julgá-lo prepotente e antipático. No elevador da biblioteca, temendo pelo meu emprego, insisto. Que me responda ao menos duas perguntas: "Por que o senhor nunca se filiou a nenhuma escola literária? O poema é  como um copo d'água bebido no escuro,conforme está num de seus poemas?" O poeta, terno surrado, olha-me com seus olhinhos miúdos. Diz: "Nunca me filiei a nenhuma escola literária porque o perigo de entrar num barco coletivo é que todos naufragam ao mesmo tempo. Não, o poema não é como um copo d'água bebido no escuro. Todas as definições que dei de poesia foram exatamente para me ver livre dos perguntadores: a poesia não se entrega a quem a define."
Matéria salva. Dessas duas respostas breves, inventei meia página, usando trechos da palestra do poeta. Dia seguinte, o telefone toca na redação do Diário. Dizem que Mario Quintana quer falar comigo. As brincadeiras de mau gosto sempre foram comuns nas redações de jornais e revistas, tendo os mais novos, como era o meu caso, as vítimas preferidas. Mas vou ao telefone. Era o próprio. Queria agradecer pela matéria. Só aí percebi que a negativa da entrevista não era arrogância, mas timidez. O autor de A Rua dos Cataventos, seu livro de estreia, publicado em 1938, quando o soneto andava em baixa, pela febre modernista, não conhecia sua grandeza. Gaúcho do Alegrete, na divisa com o Uruguai, era humilde ao extremo.
E tão humilde que quando quiseram homenageá-lo no seu Alegrete, pedindo que escolhesse um poema para ser perpetuado numa placa de bronze, na praça principal da cidade, recusou, com medo de não escolher o melhor. Disse apenas uma frase, hoje lá imortalizada: "Um engano em
bonze é um engano eterno."
Tradutor de Guy de Maupassant, Papini e Balzac, entre outros, jornalista profissional, solteirão inveterado - dizem que teve um amor platônico pela poeta Cecília Meireles (que era casada e  foi quem divulgou sua poesia no Rio de Janeiro, quando Porto Alegre era apenas uma província), Quintana viveu poesia. Para Cecília ele teria escrito estes versos: "Senhora, eu vos amo tanto/Que até por vosso marido/Me dá um certo quebranto..."
 Irônico e bem-humorado, era dono de tiradas memoriais, prova disto está em seu Caderno H, transformado em livro, título da coluna que publicava no Correio do Povo e que depois, por intermédio do jornalista Tarso de Castro, também gaúcho, passou a sair aos domingos no Folhetim, suplemento cultural do jornal Folha de S.Paulo.
Anos após a minha entrevista com ele, fui encontrá-lo de novo na Bienal do Livro, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo também. Mario autografava o seu Esconderijos do Tempo. Reconheceu-me. Nunca me senti tão importante. E tanto tempo já havia passado. Levantou-se e me veio entregar o livro, com seu autógrafo e a dedicatória: "Para Júlio, com abração do amigo velho, Mario Quintana."
 Tarde da noite, saímos para um café. Ele já não bebia mais.  Eu  já havia publicado um livro e bebia muito. Pedi  conhaque, ele café e presunto. Quando fui pagar a conta, ele tirou do bolso do paletó uma maço de notas amassadas e disse: "Deixe que um poeta velho pague para um poeta novo." A esta época, Quintana residia num quarto de hotel do ex-jogador Falcão, que não lhe cobrava nada. Hoje este quarto é uma espécie de centro cultural. Tudo está como o poeta deixou, inclusive as fotos da atriz Bruna Lombardi, por quem se encheu de encantamento. Até ao final de sua vida, Quintana e eu trocamos correspondência. Era aquele sujeito puro. Que todo mundo queria ter como avô.

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sábado, 9 de janeiro de 2010

UM TANTO QUANTO OU BREVE

para Ferreira Gullar, com respeito - dedico.

o maranhão não cabe na minha rua
o piauí e o parnaíba também não
eu não caibo na minha rua
queria ser grande como uma lua cheia
mas a vida não cabe num sábado
quando se prepara a morte
perdoa o golpe lento do punhal
nas minhas costas
o sangue sai por etapa
mas hoje não devo morrer
amanhã ou depois
quem sabe eu ame madalena ou rita
quem sabe eu me dê por inteiro
a qualquer puta do mangue
amanhã talvez eu faça um poema
e o diga alto e em bom tom
na porta da academia brasileira de letras
pra que machado me aplauda

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Júlio Saraiva,
São Paulo,  Brasil
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Ferreira Gullar: sinônimo Brasil


O que dizer deste homem magro, pequeno e franzino? Fumante inveterado, um dia aportou no Rio de Janeiro, vindo de São Luís do Maranhão, filho de um quitandeiro, com um livro de poesia debaixo do braço- A Luta Corporal,colocado, por equívoco do livreiro, por causa do título, na prateleira dos livros de esportes, o que nunca foi o forte de Gullar. Mas precisou que o próprio poeta, numa de suas andanças por livrarias reparasse isto. José de Ribamar Ferreira, adotou por pseudônimo literário Ferreira Gullar. Todo maranhense é José de Ribamar, por conta de um santo- até ele. Poeta, crítico de arte, ensaísta, artista plástico e jornalista profissional é dono de uma inteligência fora do comum. É dele o maior poema épico depois de Os Lusíadas, de Camões, escrito em língua portuguesa - O Poema Sujo. Sobre ele não há mais nada a dizer.

Júlio Saraiva,
UM POEMA DE FERREIRA GULLAR
                       
O teu mais velho canto,
arrastado com o sol varrido
no coração das épocas
eu o recolho,agora, entre estas pedras queimando
                                                                                 Tua boca real
clareia os campos que perdemos.
Eu jazo detrás da casa, aonde ninguém vai
(onde a mitologia sopra, perdida dos homens,
entre flores pobres)

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Verão



Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração - resiste.

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Ferreira Gullar,
Rio de Janeiro, Brasil
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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Martelada

o essencial não é a metáfora viva
nem o cortar dos pulsos nem a recaída
porque o essencial não é o luxo descarado
nem o sarampo ou cuspir para o lado
porque o essencial é não trazer brancos, os cabelos,
e na impossibilidade, pelo menos, tê-los
porque o essencial é montar a adolescente
e esconder a Obra de toda a imensa gente
porque o essencial é negar três vezes Cristo
e chamar o empregado – de lado –
e exclamar: - Quem fez isto?!
porque o essencial é a metafísica em acto
e ser bicho cruel - cobra ou rato –
porque o essencial é dar nas vistas e causar frisson
e fazê-las subir as escadas do hotel – n’est pas, garçon?
porque o essencial é largar tudo e sair para a estrada
e no caminho tropeçar em deus e não dar por nada

com a cabeça erguida e o pérfido riso
de quem já tudo viu e perdeu o juízo.

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Mario Osorio
Lisboa, Portugal
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Cigarra pós-moderna

Dizem que o menino é artista
Vejam
Faz sol estremecer
E nem precisa de muitos dentes

Dizem que o menino é um artista
Pasmem
Até tem acordeão à frente
Mais gaita-de-foles atrás

É o artista multifunções
Só não digitaliza folhas de memórias
Por considerar que as lantejoulas varrem tudo da vida

Aplausos e olés

Este verdadeiro artista
Há-de morrer esticado
Tal e qual rodela de laranja a enfeitar um qualquer prato plástico.
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Cristóvão Siano, Portugal
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

EPIFANIA(*)

no vale do jequitinhonha
reis magros famintos
disputam restos
da estrela de belém
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(*) palavra grega,
que quer dizer manifestação.
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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

PRENÚNCIO DE UMA ELEGIA

"Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho"
- Carlos Drummond de Andrade -

não te farei uma prece
porque deus fugiu de mim faz tempo
não repares
: não posso suplicar às estrelas
porque tenho os olhos míopes
e sem os óculos enxergo nada
- ou quase
vejo-te com teus dedos exaustos
batendo na porta do fim
fim? mas que fim é este?
o fim não existe
vem um padre que gostavas
ele sim diz uma prece
com seu livro de rezas na mão
como não podes mais receber a hóstia
faço tuas vezes embora não creia
mas já fiz tanto isto na sala de visitas do nosso casarão
- lembras-te?
eu era só o menino triste e levado que conversava com os cães
e rabiscava frases que não tinham sentido
numa noite de julho tentei me matar
e acordei numa casa de loucos
e pensei que a enfermeira que me pedia calma
com seu par de olhos azuis fosse um anjo
depois eu tinha a bola nos pés
depois eu tinha o mundo nas mãos
e percebi que todo gol que eu fazia era inútil
me perdoa
não tive culpa quando a poesia veio ter comigo
sabia que isso ia acabar em dor
mas não pude recusá-la
me perdoa
teu menino envelheceu
criou barba teve mulheres chorou amores perdidos
escreveu canções nas mesas dos bares
não foi culpa minha
a poesia me seduziu criminosamente
sem que eu pudesse dizer não
não pensei que isto fosse acabar em dor
(tenho a alma suja de sangue)
me perdoa
o ato de existir também me agride
agora quando os teus dedos frágeis mãe
batem na porta do fim

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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domingo, 3 de janeiro de 2010

ORAÇÃO

Oiro da noite
pó das estrelas
chuva de cinzas
à flor da pele
matéria negra
matéria fria
língua de fogo

rogai por nós

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Domingos da Mota,
Vila Nova de Gaia, Portugal
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sábado, 2 de janeiro de 2010

DIÁRIO DE BORDO

1.

nada sei de ventos
nunca viajei de navio

meus naufrágios todos
foram sempre em
terra firme


2.

este nó de marinheiro
dentro do meu peito
que a cada dia me sufoca mais
já nasceu comigo

por isso
nunca vou conseguir
desatá-lo


3.

desejo
navegar até
que os ventos
se cansem


4.

marinheiro sem mar
divirto-me
preparando tempestades
para
a última viagem


5.

agora é tarde
meu navio não tem
mais volta

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

TOADA DE ANO NOVO

vestidos novos
notícias velhas

o cansaço de ontem
na preguiça de hoje

uma pomba
uma bomba

uma faca
uma flor

o armamento
o armistício
a chuva de
artifício

o aumento
o alimento

os magos
que a mão da ganância
inventou
os magros
que a fome do mundo
criou

vestidos novos
notícias velhas

às onze e quarenta morro
à meia-noite renasço
amanhã peço socorro
mas até lá um abraço

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Júlio Saraiva,
São Paulo, Brasil
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